Juiz que deu voz de prisão ao não entrar em voo já usou escravos duas vezes
Leonardo Sakamoto
08/12/2014 13h13
Atendentes da TAM receberam voz de prisão do juiz Marcelo Baldochi e foram conduzidos à Polícia Civil, em Imperatriz (MA), na noite deste sábado (6). O motivo: após chegar atrasado, o juiz não foi autorizado a embarcar em um voo que partia para Ribeirão Preto (SP).
De acordo com depoimento de funcionários do aeroporto a este blog e segundo um vídeo que está circulando na rede, inconformado com o que seria um desrespeito ao seu "direito de consumidor", o juiz mandou prender os trabalhadores. A TAM disse, em nota, que segue os procedimentos de embarque previsto na legislação. O blog não conseguiu contato com o juiz ou com o delegado até o momento de publicação deste post. Os três funcionários foram liberados.
Mesmo tendo sido formalmente abolida, a escravidão está tão enraizada em nossas fundações que ainda rege as relações sociais por aqui. No mundo do trabalho, sabemos quem manda e quem obedece. E as consequências de não seguir à risca os papeis atribuídos a cada um.
Mas, um momento: eu disse "formalmente abolida". Pois há quem continue sendo flagrado utilizando-se de formas contemporâneas de trabalho escravo. Como o próprio juiz Marcelo Baldochi.
Em 2007, um grupo móvel de fiscalização, coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, resgatou 25 escravos da fazenda Pôr-do-Sol, no município de Açailândia (MA), de propriedade do juiz. Entre eles, havia um adolescente de 15 anos. Os trabalhadores faziam a derrubada da mata e o roço do pasto para o gado, com exceção de duas mulheres, que cozinhavam para o grupo.
De acordo com o relatório, o grupo de fiscalização chegou ao local após denúncia de um fugitivo. O isolamento geográfico, a retenção de salários e a existência de dívida ilegal caracterizaram a situação encontrada como trabalho escravo. Na cantina, os trabalhadores contraíam dívidas com artigos alimentícios e equipamentos de proteção individual, como botas e luvas. As condições de alojamento eram degradantes e insalubres.
Até agora, Marcelo não foi punido criminalmente e o Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão chegou a cancelar uma indenização concedida a um dos trabalhadores escravizados em uma das fazendas. O juiz também foi inserido na "lista suja do trabalho escravo", cadastro do governo federal que relaciona os que foram flagrados usando esse tipo de mão de obra e que é usado como referência de bancos e empresas para cortar negócios, em dezembro de 2008. Mas saiu devido a uma liminar judicial em junho de 2009 – 18 meses antes do prazo regulamentar.
Através de sua atuação como magistrado, ele também interferiu em um julgamento de outro produtor, Miguel de Souza Rezende – que já foi flagrado mais de uma vez usando trabalho análogo ao de escravo em suas propriedades de gado no Maranhão. A ação do juiz, de autorizar a mudança de esfera para o julgamento desse réu, foi vista pela sociedade civil e pelo Ministério Público como danosa ao processo. Pois, com a consequente extensão do prazo, poderia contribuir com a prescrição do crime.
Enfim, em 2011, uma nova operação guiada por denúncias de trabalhadores resultou no resgate de quatro pessoas em condições análogas às de escravos na fazenda Vale do Ipanema, em Bom Jardim (MA), onde Marcelo Baldochi criava gado.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.