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O problema da fome não é de falta de comida. É de distribuição de riqueza

Leonardo Sakamoto

18/12/2014 12h56

O IBGE divulgou pesquisa, nesta quinta (18), apontando que a insegurança alimentar grave caiu de 6,9% dos domicílios (2004), passando a 5% (2009) até 3,2% (2013). Em 2009, eram 11,2 milhões de pessoas. Agora, 7,2 milhões.

Ainda é muita gente.

Nunca senti fome de verdade para poder entender de verdade e falar a respeito. Passar um dia ou dois dias sem comer por alguma catástrofe não conta. É diferente da dor sentida por aqueles que realmente não têm acesso a alimento e têm que ir para cama mais cedo encarar o ronco do sono para não encarar o ronco do estômago. Fome é sensação de ser comido por dentro, em uma angústia longa de rogar por ajuda, esperar por ajuda. E a ajuda não vir.

Os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e todo o pacote de ações públicas que vem com eles, e a geração de empregos merecem crédito pela redução. Mas esse processo ainda está lento demais. Pode soar demagógico, mas fome é algo que não se pode dar mais tempo.

Até porque o problema da fome no Brasil não é de falta e sim de distribuição. Há riqueza para todo mundo, a questão é distribuí-la.

A cantilena é antiga, mas garantir terra e, principalmente, condições de produção, com apoio técnico, irrigação e financiamento, e facilitar o escoamento das mercadorias é uma das soluções poderosas não pontuais para o problema na região rural. Sim, reforma agrária.

A pesquisa mostra que, entre 2009 e agora, mais de 90 mil domicílios rurais passaram a ter medo de passar fome.

Sem contar que isso ajuda a garantir mais alimentos na mesa do brasileiro – uma vez que a pequena agricultura familiar é responsável por boa parte dos produtos in natura que consumimos. Hoje a maior parte dos recursos e das prioridades ainda passa longe desse pessoal, por mais que a atenção dada eles tenha crescido nos últimos tempos.

Em certas regiões, as famílias podem até ser ignoradas pelo "céu", que não manda a chuva, mas se estrepam mesmo é com a ação direta do pessoal de carne e osso (que está de olho em suas terras ou sua força de trabalho), a inação do Estado e a complacência de muitos de nós.

O mundo está acordando para o fato de que é necessário mais apoio para a produção agropecuária como instrumento de combate à fome. O que não significa apenas garantir mais produtividade através de tecnologia (que, se por um lado, gera mais alimentos, por outro cria uma dependência econômica onde antes não havia – como o caso dos transgênicos). Ou amenizar a guerra de subsídios. Mas também discutir que tipo de modelo será capaz de garantir a segurança alimentar para bilhões de pessoas no desenrolar deste século.

De acordo com a FAO, a agência das Nações Unidas para agricultura e alimentação, o aumento na produção de alimentos terá que ser da ordem de 70% para suprir uma população de 9 bilhões de pessoas em 2050. Quem vai produzir essa comida extra? Segundo as Nações Unidas, os pequenos produtores e suas famílias (que representam cerca de 2,5 bilhões de pessoas ao redor do mundo) têm um papel fundamental, atuando com menos impacto trabalhista, social e ambiental e sustentando eles próprios que são os primeiros a passarem fome. Há muita gente querendo plantar no Brasil e em outros países, principalmente na África, onde a questão da fome tem contornos dramáticos. Só lhes falta terra, recursos, escoamento, capacitação, tecnologia.

Adoramos culpar as velhas oligarquias, mas esquecemos que elas deram sustentação para todos os governos desde redemocratização. Sem contar o fato de que a economia lucra sim com essa estrutura de exploração. Ou você acha que o seu tanque de etanol é realmente limpo e barato com esse exército de trabalhadores rurais temporários superexplorados que se esfolam na cana aqui e ali?

O objetivo deste texto não é fomentar a culpa em tempos de festas – apesar de ser um sentimento bastante presente entre os cristãos e que não leva a lugar nenhum. Mas lembrar que comemorar significa também "lembrar junto". Ter em mente que nossa caminhada é longa, mas não fará lá muito sentido se chegarmos lá sozinhos.

Garantir que todos tenham acesso às mesmas oportunidades e ao mesmo quinhão de Justiça. Para isso, nossa geração terá que ter a coragem de demolir estruturas arraigadas desde a fundação do país, que garantem que uns tenham tudo e outros nada.

E a pior das estruturas é nossa vergonhosa e humilhante concentração de riqueza. Sem combatê-la, o fim da fome é sonho distante.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto