Leitores relatam terror e pânico na noite de Natal com a família
Leonardo Sakamoto
25/12/2014 10h29
Recebi de leitores relatos de como foi a experiência da noite da véspera de Natal com parentes e amigos que aproveitaram a ceia para defender a volta da ditadura, a esterilização forçada dos mais pobres, o machismo institucionalizado, o racismo desvairado, o assassinato de usuários de drogas.
Ou seja, entre uma garfada no peru, uma colherada de farofa e um gole de espumante, enterrar o significado solidário da data.
Reuni algumas dessas mensagens, completando com informes que recebi de amigos, em tempo real, via WhatsApp (muitas listas de discussão se tornaram verdadeiros grupos de ajuda mútua para que fosse possível terminar a noite) e relatos na manhã de hoje. Como não pedi autorização para nenhum dos leitores, reproduzo sem citar os autores. Também peço desculpas porque tive que resumir algumas.
"Me ajuda. Parentes disseram que não existiu ditadura militar no Brasil. Que a ditadura matou apenas maconheiros vagabundos esquerdistas. Quero chorar."
"Meu tio disse que jogou o carro em cima de um ciclista que andava pela ciclovia só para ele 'ficar esperto' na vida. Todos na mesa, tirando eu, riram."
"Meu primo acaba de dizer que só volta pro Brasil de vez se passar a valer pena de morte para corrupto e para bandido. Eu disse que concordava se também valesse para sonegador de impostos. Tive que ouvir meia hora de reclamação da família inteira."
"Tem um primo aqui em casa, da família do meu avô, que disse que vai passar a dizer que é gay só para ter mais direitos que os outros e ser defendido pelos direitos humanos. Muita gente da minha família riu mesmo sabendo que eu sou gay e que minha vida, por conta disso, é super difícil."
"A besta do cunhado da minha irmã, que no Natal passado ficou em silêncio, não parou de contar piadas racistas a noite inteira. Mesmo com todo mundo constrangido, ele continuou."
"Minha tia disse que o Bolsa Família deveria ser dado só para mulheres que aceitassem ligar as trompas. Pedi licença e saí da mesa."
"Meu primo defendeu que pegasse todos os usuários de drogas e passasse fogo. Retruquei que ele também gosta de um bom uísque. Foi aquele silêncio. Meu pai disse que era diferente, que álcool não mata ninguém e ainda tive que ouvir que era assim porque faço psicologia."
"Saka, falaram mal de você por cinco minutos no jantar. Você tá mais presente na minha família que Deus kkkkkkk."
"A frase da noite foi 'eu não sou preconceituoso, mas…' ".
"O cara passou o Natal reclamando de corrupção e, no final, chegou pra mim e perguntou se eu não conhecia alguém na Secretaria de Habitação porque ele está precisando resolver uns problemas."
"O Brasil está quebrado, o filho dele tá se mudando para Miami…"
"Cara, eu não sabia mais o que fazer. Um bando de machistas em torno da mesa ficou falando de "feminazis" pra cá, "feminazis" para lá, minha tia, que é uma dondoca e acha que trabalhar é coisa de pobre, teve a coragem de dizer que mulher na política só faz besteira, que se for assim, melhor ficar em casa cuidando dos filhos!!! E ela fala isso com tanta naturalidade que até assusta!!! E minhas primas pequenas ouvindo isso!"
Alguns informaram que tentaram as sugestões do meu texto "Como sobreviver à família ultraconservadora na festa de Natal". Uns obtiveram êxito, outros não. Desculpem, mas como 2014 foi o ano em que muitos desses espécimes saíram do armário (o que acho ótimo), ainda é cedo para que tenhamos um mínimo de acúmulo a fim de montar uma Teoria Comportamental do Trato Natalino com Dodóis que seja aplicável universalmente.
Em suma, durante muito tempo vai ser na base da tentativa e erro. Gastando litros de paciência, quilos de diálogo. E amando o semelhante mais do que a nós mesmos.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.