"Liberdade de expressão" é como self-service: você come o que lhe convém
Leonardo Sakamoto
09/01/2015 08h20
Liberdade de expressão começa em casa, ou melhor dizendo, na própria redação. Por conta da ignóbil chacina promovida contra a redação do Charlie Hebdo, em Paris, muito tem se falado sobre o tema. Mas as ameaças não são apenas externas – como o fundamentalismo religioso, passando pelo crime organizado, os interesses de grandes corporações até o poder político.
Um veículo de comunicação é, em última instância, um negócio, com todas as relações humanas, interesses e pressões de poder. E é natural que seja assim e que seja livre para ter uma linha editorial própria e defender seu ponto de vista Mas também é algo em constante aprimoramento, em um processo em que aprende-se a conviver com limites, reconhecer as imperfeições e consertar o que não está bom.
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Cada uma das linhas abaixo brotou de uma história que ocorreu em alguma redação espalhada pelo país, da progressista à conservadora, da grande à pequena, tradicional ou alternativa, e me foram relatadas por colegas.
Nomes? Já perguntava Shakespeare: "O que há num simples nome? O que chamamos rosa com outro nome não teria igual perfume?"
Creio que isto é válido para lembrar que ninguém está sozinho. Afinal, se alguma dessas situações já aconteceu com você, primeiro relaxe, depois vá à luta.
E seja bem vindo ao jornalismo, onde "liberdade de expressão" é um conceito self-service: ninguém o coloca inteiro no prato, mas apenas a parte que lhe convém.
Liberdade de expressão é:
– Não ligar para redação xingando jornalista por matéria sobre problemas no metrô
– Não demitir por telefone o pobre repórter que discordou educadamente da linha editorial do veículo
– Não usar nunca a frase "coloca isso na capa porque quem manda aqui sou eu"
– Não usar a pergunta "você sabe com quem está falando?" em uma reunião de pauta
– Ter a certeza de que a denúncia contra aquele anunciante amigo do patrão vai sair mesmo
– Saber que a apuração virá da reportagem e não da sala da chefia
– Não ser demitido porque o usineiro amigo do dono do jornal se sentiu ofendido com a verdade
– Não sofrer preconceito dos colegas da imprensa por trabalhar em um veículo carimbado como de esquerda ou de direita
– Ter reunião de pauta em que participe mais gente do que apenas o diretor de redação
– Não ser delicadamente removido para setorista de rodoviária porque reclamou de censura prévia
– Não ver seu texto tão alterado no conteúdo a ponto de ter que pedir para tirar seu nome dele
– Não se sentir oprimido ou com pavor de dar uma opinião contrária na reunião de pauta
– Não ser demitido por fazer análise econômica contrária aos interesses de alguém
– Não te entregarem o título pronto da matéria antes de você sair para a apuração
– Não ser proibido um homem usar brinco ou uma mulher ter tatuagem na redação
– Não ter que criar conta falsa de e-mail para dizer ao chefe o que pensa daquela matéria bisonha
– Não ter que fazer hora extra só para salvar o péssimo texto do amigo do chefe que deve entrar amanhã
– Não ser monitorado nas redes sociais pela empresa jornalística em que trabalha
– Ficar no fechamento até tarde sem medo de que o editor te convide para ir para a cama com ele
– Não perder uma promoção por conta de posicionamento ideológico
– Não perder uma promoção por ser mulher
– Não perder uma promoção por ser negro ou negra
– Ao trabalhar em TV e agência públicas, não ter que prestar serviço de assessoria ao governo
– Fazer uma entrevista sem ter medo do editor "adaptar" as ideias da fonte depois
– Não ouvir do chefe para esconder informação de interesse público porque ela "não ajuda na causa"
– Não ser obrigado a defender igreja e chamar umbanda de coisa do capeta.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.