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Ao pedir pena de morte para tráfico de drogas, matamos junto a civilização

Leonardo Sakamoto

17/01/2015 11h53

O brasileiro Marco Archer Cardoso Moreira foi fuzilado, na manhã de domingo, na Indonésia, 15h30 deste sábado (17), no Brasil, por ter sido condenado por tráfico de drogas. Ele tentou entrar no país, em 2003, com 13,4 kg de cocaína em tubos de uma asa-delta.

Muita gente nas redes sociais está louvando a atitude do governo indonésio, tuitando e postando que o traficante brasileiro teve o que mereceu e pedindo para que a lei mude no Brasil a fim de que a pena de morte passe a valer para casos penais comuns (ela persiste apenas em tempos de guerra) e salvar as "pessoas de bem" do caos.

Há ainda os que exigem que a polícia daqui faça o mesmo: chega de julgamentos longos e com chances dos canalhas se safarem ou de "alimentar bandido" em casas de detenção. Execute-os com um tiro, de preferência na nuca para não gastar muita bala, e resolve-se tudo por ali mesmo. Limpem a urbe.

E vamos indo da barbárie para a decadência sem passar pela civilização.

"Ah, lá vem o japa idiota defender bandido". Não, não estou. Mas, para muita gente, isso não importa. Já formaram um conceito em sua cabeça e, a partir daqui, tudo o que eu escreva para fomentar um debate será desconsiderado em nome da saída mais fácil.

Primeiro, mais cedo ou mais tarde, e gostem vocês ou não, haverá uma paulatina descriminalização e regulamentação do comércio e do uso de psicoativos, com, é claro, a necessária e prévia introdução de um sistema de informação e conscientização sobre o seu uso. Por uma razão simples: o negócio formal também dá dinheiro. E muito. Nos Estados do Colorado e na capital Washington DC, por exemplo, os Estados Unidos já regularizaram a maconha – tal como nosso vizinho Uruguai. Outros países discutem o mesmo, incluindo substâncias mais fortes, em uma discussão de longo prazo. Sabem que a Guerra às Drogas falhou, servindo apenas para controle geopolítico e para fortalecer grupos de poder locais e o tráfico de armas. E, a propósito, se vocês soubessem como historicamente foi definido o que é droga e o que não é, não levariam isso muito a sério.

Mas este não é o tema. Marco desrespeitou a legislação de outro país e, por conta disso, é natural que fosse punido. Mas pagar com a própria vida foi um custo demasiadamente alto.

"Ah, japonês, mas e as vidas que ele tirar com essas drogas?" Nesse sentido, acidentes com automóvel mataram mais que as drogas no último século. Que tal punir as montadoras? "Ah, mas aí depende do uso que se faz automóvel e de como aprendemos a usa-lo". Essa relação exagerada que fiz serve para mostrar que o debate não é tão simples como te vendem na TV.

Para muita gente aqui, execuções sumárias são lindas, sejam as feitas legalmente e "informalmente" pela mão do próprio do próprio Estado (ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista), sejam as feitas pelas mãos da população (ao linchar suspeitos de crimes por turbas enfurecidas e idiotizadas).

Se com o devido processo legal, inocentes amargam anos de cadeia devido a erros, imagine sem ele? Já trouxe aqui uma miríade de casos de pessoas que foram espancadas pela irracionalidade coletiva, acusadas de serem responsáveis por crimes que, posteriormente, provaram-se não terem relação. Não tiveram direito à defesa ou à recurso, que são fundamentais, uma vez que a decisão tomada através do processo legal – por mais que seja falha – ainda é o melhor que temos.

Ao mesmo tempo que pessoas nas redes sociais estão tendo orgasmos múltiplos com a execução pública do brasileiro na Indonésia, alguns comentaristas na imprensa (e não estou falando dos programas sensacionalistas espreme-que-sai-sangue) parecem vibrar a cada pessoa abatida na periferia, independentemente quem quer que seja.

Jornalistas, cuja opinião respeito, optaram pela saída fácil do "isso é guerra contra as drogas e, na guerra, abre-se exceções aos direitos humanos", tudo em defesa de uma breve e discutível sensação de segurança.

Vale lembrar que as verdadeiras batalhas do tráfico sempre aconteceram longe dos olhos da mídia, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados sempre é de jovens, pardos, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas ou pelas leis do tráfico. No Brasil e fora dele.

Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia. Mesmo no pau que está comendo, sabemos que a maioria dos mortos não é de rico da Lagoa, da Barra ou do Cosme Velho. Ou do Morumbi, do Jardim Europa e de Perdizes.

Considerando que muitos policiais, comunidades e traficantes são de uma mesma origem social, é uma batalha interna. Então, que morram, como disseram alguns leitores esquisitos que, de vez em quando, surgem neste blog feito encosto.

Como já disse aqui várias vezes, de tempos em tempos, a violência causada pelo crime organizado retorna com força ao noticiário, normalmente no momento em que ela desce o morro ou foge da periferia e no, decorrente, contra-ataque. Neste momento, alguns aproveitam a deixa para pedir a implantação de processos de "limpeza social" e de execuções de bandido.

Muitas das postagens que estão correndo nas redes sociais sobre a pena de morte para o brasileiro na Indonésia não estão refletindo sobre a gravidade de seu delito (ele não atentou contra a vida de ninguém) para concordar com as leis indonésias, mas projetando o seu sentimento pessoal sobre o tráfico de drogas no Brasil e o seu desejo de vingança contra aquilo que, diariamente, parte da mídia escolhe mostrar.

Desejo tardio. Porque, como todos nós sabemos, a pena de morte já existe em São Paulo, no Rio de Janeiro e em tantas outras grandes cidades, apesar de não institucionalizada, como instrumento policial. Há também milícias que se especializaram nisso, inclusive, ao avocar para si o monopólio da violência que, por regra, deveria ser do Estado.

Gostaria que fossem tornados públicos os exames dos legistas. Afinal de contas, acertar um tiro na nuca de um suspeito no meio de um confronto armado demanda muita precisão do policial – e depois registrar o ocorrido como auto de resistência demanda criatividade.

Para contrapor os bandidos estamos optando pelo terrorismo de Estado ao invés de buscar mudanças estruturais (como garantir real qualidade de vida à população para além de força policial dia e noite) e punir de forma exemplar crimes, como prevê a lei, contra a vida.

Ninguém está defendendo o crime, muito menos bandidos e traficantes – defendo a descriminalização das drogas como parte do processo de enfraquecimento dos traficantes e pelas liberdades individuais, mas isso é outra história.

O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao defendermos pena de morte ou Justiça com as próprias mãos. Do que estamos abrindo mão com isso?

Enfim, como já leram várias vezes por aqui, de vez em quando não sei de quem tenho mais medo: dos bandidos, dos "mocinhos" ou de nós mesmos.

Atualizado às 17h do dia 17/01/2015 para incluir a informação sobre a morte do brasileiro.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto