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Dilma esquece que é água e sangue que correm nas hidrelétricas da Amazônia

Leonardo Sakamoto

01/03/2015 20h36

Seria melhor Dilma ter usado sua página no Facebook para discutir se o famigerado vestido é branco e dourado ou azul e preto (é azul e preto, aliás) do que ter postado a seguinte abobrinha:

"A tarifa de energia decorre das chuvas. Quando aumenta a chuva, diminui a tarifa de energia porque usamos mais a energia hidrelétrica. Quando diminui a chuva, diminui a energia hidrelétrica e aí a gente tem de contratar energia térmica. E térmica é mais cara, porque você paga aquilo que produz a térmica. Você paga o gás, você paga o carvão. E quando é água que você está usando para produzir a energia, você não paga a água. Ela é gratuita."

Gratuita uma pinoia! E o impacto ambiental, social e trabalhista das obras de grandes hidrelétricas na Amazônia, levadas a cabo pelo seu governo? E as comunidades indígenas e ribeirinhas que são impactadas ou deslocadas? E o trabalho escravo nos canteiros de obras de hidrelétricas? E o tráfico de pessoas para exploração sexual a fim de servir esses canteiros? E a criação de novos vetores de desmatamento, o que acentua as mudanças climáticas e a ocupação desordenada do solo? E os assassinatos de posseiros e sindicalistas em conflitos rurais gerados por essa ocupação maluca? Tudo isso não entra na conta?

Se o impacto na população do entorno não vale de nada, então por que não construímos uma usina nuclear onde é hoje o estádio do São Paulo Futebol Clube? (sou palmeirense, acho o estado do Corinthians legal e tenho apreço pelo Juventus e pela Lusa)

Ao fazer esse tipo de comentário, deixando passar essa avaliação, Dilma reforça sua visão de mundo de um nacional-desenvolvimentismo tacanha e hardcore.

Até porque é sabido que ela defende com unhas e dentes um modelo de desenvolvimento que se assemelha, e muito, àquele que foi levado à cabo durante a ditadura contra a qual ela bravamente lutou e que a insistentemente torturou.

Esse comentário pode ser útil para reconquistar parte do eleitor da "nova classe média" (a.k.a. classe baixa com poder de consumo) que tem a (justa) preocupação de saber se vai haver energia para os eletrodomésticos que acaba de adquirir. Lembrando que o acesso à cidadania no Brasil não se dá através da garantia de serviços básicos, mas sim do consumo.

Pergunto-me se, neste momento em que Dilma está lutando para se manter e precisa mais do que nunca do trabalho da base de seu partido (o pessoal que faz corpo a corpo junto à massa, ao contrário dos emissários com nojo de gente que ocupam parte dos gabinetes em Brasília), esse tipo de declaração realmente ajuda.

Pelo contrário, o que se vê nas redes sociais é que ela consegue deixar mais envergonhada ainda aquele grupo de pessoas ligados a movimentos sociais e que tinham fé de que, apoiando a sua eleição, haveria a possibilidade de um governo mais à esquerda.

Talvez porque acredite piamente nessa "gratuidade" é que o governo federal está passando por cima do povo Munduruku para implantar as usinas hidrelétricas no rio Tapajós (a próxima bomba-relógio de cimento e cal).

A verdade é que a política de construção de hidrelétricas no Brasil é estruturada na base do medo. Não se investe o que se deveria na troca por geradores mais potentes e na extensão de linhas de transmissão para diminuir as perdas e interligar o sistema. Investe-se pouco em energias alternativas. Ignora-se em qualquer planejamento que a mudança climática afetou de forma definitiva nosso regime hídrico e, portanto, nossa capacidade de geração. E, quando a bomba estoura sob risco de apagão ou no aumento do custo da megawatt-hora, impõem-se uma chantagem barata:

"Olha, vocês têm que escolher: ou sacrificamos algumas comunidades e ecossistemas ou não vai ter energia para vocês verem Big Brother na TV."

Para defender esse ponto de vista, o governo tergiversa. Em 2011, fui convidado a integrar, no papel de relator, uma comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), que verificou as violações aos direitos humanos no Pará. Visitamos a região de Belo Monte, ouvimos as populações impactadas pelo projeto.

Entre as recomendações do relatório que apresentei no ano seguinte, estavam ouvir as comunidades, cumprir as condicionantes ambientais e indígenas, apurar denúncias de intimidação, invasão de propriedades e indução de assinaturas de contratos. Infelizmente, o relatório não levou a nenhuma mudança concreta.

Pelo contrário, até trabalho escravo de adolescente em prostíbulo que atendia os empregados de Belo Monte (impacto que é previsto em qualquer obra desse tipo) ocorreu.

Ou seja, criança explorada sexualmente é parte da "gratuidade" da água que gira a turbina.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto