Caso Babilônia: Promovendo a barbárie em nome de Deus
Leonardo Sakamoto
23/03/2015 11h31
Desculpem o atraso, mas só agora pude ler a nota de repúdio da Frente Parlamentar Evangélica contra o beijo protagonizado por Fernanda Montenegro e Nathália Timberg em uma cena da novela Babilônia, da rede Globo.
Uma ótima nota.
Ótima para nos lembrar que ainda temos momentos da mais completa barbárie.
Em qualquer lugar minimamente civilizado uma cena como essa teria sido banal – o que, claro, não é nosso caso. O que prova que gostamos de jogar purpurina e perfume em cima da titica para chama-la por outro nome. Mas, inútil, ela continua sendo titica. Uma titica estilosa, cheirosa, com cara de moderna, mas ainda assim titica.
Após a cena ir ao ar, o ultraconservadorismo tacanho aliado à mais COMPLETA FALTA DO QUE FAZER transformaram amor em polêmica nas redes sociais, em conversas de bar, em salas de jantar, em salões de igrejas.
A nota fala em afronta aos cristãos em suas convicções e princípios (até porque, como sabemos, uma religião de quase dois mil anos não resiste a um beijo de uma novela do Gilberto Braga), modismo de "outra forma de amar", ataque à família natural e "estupros morais impostos pela mídia liberal".
Particularmente, nem acho que esse povo que faz política em nome de Deus acredite, de verdade, em Deus. Caso contrário, não incitava tanta violência.
Mas esse discurso cola fácil, ainda mais em uma sociedade que foi sempre educada para ser gado e, agora, começa a se ligar que a vida não precisa ser assim. Muita gente explora o medo, afirmando que mudanças vão trazer dor e sofrimento, a fim de continuar mandando na vida dos outros. Quando, na verdade, o processo de desconstrução de preconceitos pode ser doído sim, mas o que fica depois da abertura de pensamento é uma paz difícil de descrever.
Isso dá tilt na cabeça de muita gente. Se fossem duas mulheres jovens e atraentes, tudo bem, faz parte do fetiche masculino. Mas duas mulheres de 85 anos, com idade para serem avós, não. Porque "mulher de bem" nunca aceitaria algo assim. Da mesma forma, que "mulher de bem" não vestiria nada acima do joelho, deixaria as costas de fora, beberia, fumaria ou teria vícios detestáveis, não iria para a balada sozinha, não amaria apenas por uma noite e não daria risada em público, escancarando os dentes a quem quer que seja. "Mulher de bem" tem que se portar de acordo com o que a sociedade espera dela, servindo o "homem de bem".
O problema é que, não raro, esse tilt – amparado pelas palavras de líderes religiosos e políticos – deságua em terrorismo psicológico ou agressões físicas. Como vemos nos noticiários, com gente morta e ferida, todos os dias.
O que, pelo que me lembro, está longe do "amor de Deus". Mas posso estar enganado.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.