Diz que ama o país e estaciona em cima de ciclovia
Leonardo Sakamoto
20/04/2015 17h55
Nunca consegui entender as pessoas que saem enroladas em bandeiras verde e amarelas. Amor ao país? Pode ser. Mas acho que o querer-bem a um determinado lugar se traduz através de ações individuais e coletivas para torná-lo melhor para se viver e não entulhando bandeirinhas no carro ou pendurando flâmulas na sacada da janela.
Uma coisa não exclui a outra, claro. Mas não adianta entoar mantras de amor ao país e estacionar em cima da ciclovia. Ou ser contra a distribuição de renda. Ou manter uma terra improdutiva ou um imóvel fechado por anos em nome da especulação imobiliária. Ou sonegar impostos. Ou fazer vista grossa às grandes corrupções políticas e às pequenas corrupções do dia a dia.
Amar um território inclui amar a gente que nele vive. E isso passa mais por entrega e concessão do que por reafirmação de desejos e vontades pessoais a cada momento. É pensar: será que isso que estou fazendo não vai atrapalhar a vida do coletivo?
Tenho um certo arrepio diante quando ouço alguém cantar "Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor". Se for em propagandas de cartões de crédito, até entendo. Mas por conta própria?
Nunca entendi como algumas escolas se preocupam mais em ter alunos que saibam o hino à bandeira do que compreender Guimarães Rosa.
Quando pequeno, lembro-me de ir a apenas um desfile do Dia da Independência, na avenida Tiradentes, aqui em São Paulo. E, mesmo assim, não ter ficado o suficiente para entender o que aquele bando de gente agitando bandeirinhas estava fazendo por lá. Uma das maiores contribuições dos meus pais foi exatamente ter me poupado de toda essa papagaiada patriótica.
Sei que datas cívicas servem para compartilhar (ou enfiar goela abaixo) elementos simbólicos que, teoricamente, ajudam a forjar ou fortalecer a noção de "nação". Mostrando que somos iguais (sic) e filhos da mesma pátria – mesmo que a maioria seja tratada como bastardos renegados.
Por isso, me pergunto se passado não poderíamos fazer uma pausa para reflexão sobre nós e como estendemos o direito à dignidade a todos que habitam este território.
Ao invés de nos enrolarmos em bandeiras e transformar automóveis em carros alegóricos, poderíamos nos juntar para discutir a razão de chamarmos indígenas de intrusos, sem-teto e sem-terra de criminosos, camponeses de entraves para o desenvolvimento e imigrantes bolivianos e haitianos de vagabundos.
Ou reivindicar que o terrorismo de Estado praticado na periferia das grandes cidades, em um genocídio lento dos jovens negros em nome de uma (irreal) segurança dos mais abastados pare.
O melhor de tudo é que, todas as vezes que alguém levanta indagações sobre quem somos e a quem servimos ou conclama ao espírito crítico sobre o país, essa pessoa é acusada de não amar o país, no melhor estilo "Brasil: ame-o ou deixe-o" dos tempos da Gloriosa.
Um leitor me disse dia desses que minha bandeira é vermelha e a dele é verde-amarela. Não, meu amigo, a minha é alviverde e levará o Campeonato Paulista deste ano.
Não amo meu país incondicionalmente.
Mas gosto dele o suficiente para me dedicar a entendê-lo e ajudar a torná-lo um local minimante habitável para a grande maioria da população.
Gente deixada de fora das grandes festas, entregues ao pão e circo de desfiles com tanques velhos e motos de guerra remendadas em datas festivas.
Mas que, quando voltam para casa, encaram a realidade da falta, da ausência, da dificuldade e da fome.
Qual a melhor demonstração de amor por um país? Vestir-se de verde e amarelo e sair gritando Brasil na rua?
Ama a si mesmo os que se escondem do debate, usando como argumento um suposto "interesse nacional" – que, na verdade, trata-se de "interesse pessoal" (aliás, somos craques em criar discursos que justificam a transformação de interesses de um pequeno grupo em questão de interesse público).
Se questionados, correm para trás da trincheira fácil do patriotismo.
Que, afinal de contas, como disse uma vez o escritor inglês Samuel Johnson, "é o último refúgio de um canalha".
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.