Quem furta bife, coxinha ou xampu deve ir para a cadeia?
Leonardo Sakamoto
15/05/2015 09h03
A história bombou na rede nesta quinta (14): policiais civis de uma delegacia de polícia no Distrito Federal pagaram a fiança de um eletricista desempregado que havia tentado furtar dois quilos de carne e foi pego em flagrante. Segundo ele, sua única renda são os 70 mangos do Bolsa Família, mas ele não contava com o suficiente para comprar o que a família precisava e estava há dois dias sem comer. Tanto que, chegando na delegacia, ele passou mal e desmaiou.
Por ter cuidado durante meses da esposa que havia sido atropelada, ele perdeu o emprego. O supermercado disse que a quantidade de carne furtada era maior, mas os policiais, segundo o UOL Notícias, checaram a história e, comovidos, fizeram uma vaquinha para comprar alimentos e itens de higiene pessoal.
A atitude dos policiais merece todo o meu respeito e admiração. E mostra que eles próprios concordam que, pelo menos neste caso, a lei que devem aplicar não faz muito sentido. Mas certamente há fuinhas que reclamaram, dizendo que a função da polícia é primeiro proteger o patrimônio para, só depois, muito depois, pensar na dignidade. Pobres fuinhas.
Contudo, infelizmente, o eletricista ainda pode, em tese, ser condenado a uma pena de um a quatro anos em regime fechado. Em tese, porque é difícil que isso aconteça.
Isso me lembra outras tantas histórias. Por exemplo, a do pedreiro Ademir Peraro havia roubado coxinhas, pães de queijo e creme para cabelo do supermercado Dia%, em São Carlos. O total do furto: R$ 26,00. Como a cidade fica no interior do Estado de São Paulo, onde alguns arautos da justiça reacionária têm mantido pessoas flagradas por furto famélico ou de baixo valor no xilindró, imaginei que esse também seria o destino de Ademir. Contudo, os seguranças do mercado resolveram fazer justiça com as próprias mãos.
Ele foi levado até um banheiro e agredido com chutes, socos e um rodo e deixado trancado, definhando, até às 22h. Depois, buscou socorro, mas já era tarde: acabou morrendo por hemorragia interna e traumatismos.
Na época, o supermercado disse que a responsabilidade era da terceirizada – quem pensou no projeto de lei que amplia as terceirizações e está para ser aprovado no Congresso ganha uma coxinha.
O Supremo Tribunal Federal vem desconsiderando muitos furtos de pequeno valor como crime. Essa conduta não gera uma obrigação para todos os juízes e desembargadores de instâncias inferiores, mas sinaliza o que pode acontecer com o caso se ele subir ao STF. E é uma tentativa da corte de mostrar que não são apenas os ricos e que têm acesso a advogados que conseguem decisões favoráveis no tribunal. Contido, a corte já deu decisões desfavoráveis a quem cometeu pequenos furtos quando o objetivo não era saciar a fome.
O princípio da insignificância pode ser aplicado quando o caso não representa riscos à sociedade e não tenha causado lesão ou ofensa grave. Roubar um desodorante para ficar mais cheiroso – tipo de coisa que apenas os mais tacanhas e com déficit de humanidade ousam punir com cadeia.
Se o princípio fosse amplamente adotado, teriam sido evitados os casos listados ao final deste post.
Não creio que prender alguém por conta de dois quilos de carne vai ajudar em sua reinserção social ou mesmo evitar novos furtos, o que mostra uma sanha mais punitiva do que educativa. Mesmo a abertura de um processo é, a meu ver, acintoso, pois força o Estado a gastar tempo, recursos humanos e dinheiro em algo cuja solução passaria pela geração de empregos e criação de estruturas de assistência.
Ninguém está defendendo quem erra ou comete crimes. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao acreditarmos que punições severas para coisas ridículos (mesmo reincidentes) têm função pedagógica. É, não raro, vingança mesmo.
Seguem algumas punições idiotas:
Um homem em situação de rua foi espancado pelo dono de um supermercado, seus empregados e moradores, em Sorocaba (SP), após furtar um xampu nesta quarta (26). Ele foi internado com afundamento do crânio.
Ademir – Assassinado por ter furtado coxinhas, pães de queijo e creme para cabelo de um supermercado. O pedreiro foi levado a um banheiro, agredido com chutes, socos e um rodo e deixado trancado, definhando. Morreu por hemorragia interna e traumatismos.
Franciely – Acusada de roubo de duas canetas mesmo após ter mostrado o comprovante de pagamento por ambas em um hipermercado.
Maria Aparecida - Mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado. Perdeu um olho enquanto estava presa.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.