Tragédia no Rio: O rapaz matou? Mas ajudamos a pavimentar esse caminho
Leonardo Sakamoto
22/05/2015 15h48
Nós, jornalistas, gastamos um bom tempo fazendo com que vocês, leitores, tenham uma interpretação insuficiente do mundo que os cerca.
E olha que estou falando de jornalistas que se assumem publicamente como tais e não da galera anônima, que opera no submundo das redes sociais, e que tem medo de dar a cara para bater.
A estrutura (e o tamanho) de uma notícia depende, infelizmente, da classe social ao qual pertencem os protagonistas. Os que matam e os que morrem.
Temos empatia com aqueles que reconhecemos como nossos semelhantes, com os que poderiam ser nossos primos e irmãos, e ásperos com os outros. Daí, podemos ser mais lenientes ou mais cuidadosos, a depender do caso. E como somos nós, um grupo pequeno, que fazemos a nossa democrática mídia, consciente ou inconscientemente, propagamos os preconceitos de nossas classes sociais.
Quem cometeu crimes deve, de acordo com a lei, responder por eles. Mas também devemos ser capazes, como sociedade, de impedir que esses crimes sejam cometidos – o que passa menos por um policiamento ostensivo e mais por uma presença extensiva de serviços públicos que garantam a percepção de amparo e a garantia de um mínimo de qualidade de vida.
O golpe que assassinou de forma brutal o ciclista no Rio de Janeiro pode ter partido de um rapaz de 16 anos, que não teria chegado àquele momento sozinho. Pois, se confirmada a suspeita, nós empurramos ele até lá. A sociedade tem uma parcela de responsabilidade por atos de violência como esse, bem como no caso de jovens que se tornam soldados do tráfico para matar e morrer. Na verdade, desprezamos sua existência. Até temos nojo dela, fechando o vidro de carros ao avistar um menino pobre no semáforo.
Enquanto isso, o Estado – que deveria garantir aquele quinhão de dignidade que todos têm direito por terem nascido humanos – vira as costas. E fecha verbas para educação nos estados e municípios. E reduz a torneira de recursos para áreas sociais no âmbito federal.
A excelente capa do jornal carioca Extra, desta sexta (22), colocou isso em perspectiva, fugindo da demonização fácil. O rapaz teve 15 passagens pela polícia, a primeira com 11 anos. Só viu o pai duas vezes na vida e a mãe foi indiciada por abandoná-lo com fome. Desistiu dos estudos na sexta série.
Enfim, armamos a bomba e a culpamos por sua explosão.
A partir de agora, será usado como garoto-propaganda para a redução da maioridade penal (que tal maioridade penal aos 11 então?). Ficará anos em uma instituição para jovens que, por conta das condições precárias desses depósitos de gente, dificilmente será capaz de inseri-lo na sociedade como um cidadão pleno. Voltará, provavelmente, com mais raiva ainda.
Ninguém está passando a mão na cabeça do rapaz. Mas se acreditarmos em razões simplistas e bestas, como bondade e maldade, para o mundo ser essa loucura que é, estaremos garantindo que ele continue assim.
Tenho minhas dúvidas se a notícia sairia se envolvesse uma morte em um morro. Provavelmente, na hora em que o estagiário que faz a checagem das delegacias chegasse com a informação, ouviria algo assim na redação: "Pobre matando pobre? Ah, acontece todo dia, não é notícia. Além disso, é coisa deles com eles. Então, deixem que resolvam".
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.