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Veja o lado positivo: agora sabemos quem é racista, machista, homofóbico

Leonardo Sakamoto

09/06/2015 07h09

Esconder titica embaixo do carpete pode resolver a questão estética das aparências, mas o cheiro ruim continua rondando o ambiente.

Da mesma forma, jogar purpurina no cocô não faz dele uma lantejoula, muito menos um brilhante.

E fezes vestidas com capa vermelha sobre um colã azul não ganham superpoderes. Pelo contrário, continuam transmitindo doenças.

Por isso, acho extremamente saudável que, após as manifestações de junho de 2013, o pensamento ultraconservador, envergonhado e tolhido desde a redemocratização, tenha saído às ruas e ganhado a internet. Assim, com as máscaras caídas, podemos ver quem é quem de verdade. E o que as pessoas pensam.

Pois parte da sociedade brasileira não está se transformando em algo ruim. Parte sempre foi isso aí mesmo: racista, homofóbica, transfóbica, xenófoba, preconceituosa, discriminadora, elitista, machista, inquisidora.

Que não reconhece no outro um semelhante porque não foi educada para conviver com as diferenças.

Capaz de atacar e esfolar quem ouse, na busca por direitos, pôr em risco seus privilégios.

E que vibra com a morte de sem-terra, sem-teto e crianças em situação de conflito com a lei.

Só que, antes, ficava em silêncio com medo do que o coletivo fosse pensar. Ou temia soar tacanha em um momento em que conquistávamos direitos – na produção da Constituição de 1988, na resistência das lutas sociais da década de 90, nas mudanças levadas a cabo pelos governos do PSDB e do PT (sim, os dois).

Mas os ultraconservadores em todo o mundo perceberam que não estavam sozinhos. Reconheceram-se mutuamente através da internet e, sem vergonha de serem felizes, perderam o medo. Um processo ironicamente semelhante ao que ocorreu, sem a internet e, por isso, de forma muito mais lenta, com organizações e movimentos sociais progressistas ao longo de décadas.

Contribuiu para catalisar esse processo por aqui e criar uma identidade reativa os escândalos de corrupção do governo envolvendo o PT (e não adianta falar que são invenção da imprensa, pois mensageiros podem até exagerar nas tintas, mas a paisagem já estava lá para ser pintada), a situação de declínio econômico e a conquista de determinados direitos pelos mais pobres (lembrando que efetivação de direitos não são benesses de governos, mas consequências de demandas sociais e trabalhistas, com base em sangue, suor e lágrimas).

O bom é que os jogadores estão aí, vestindo suas camisas, e com as opiniões escancaradas.

Por isso, agora você sabe que seu vizinho é racista, que o seu chefe é homofóbico, que o seu professor é machista, que aquele jornalista acha que negros são inferiores, que aquela Best Friend Forever mataria uma transexual com as próprias mãos se isso não fosse lascar sua unha, que o cara da banca de jornal tem nojo de pobre.

Ou seja, agora, o discurso que tenta construir uma narrativa de que o Brasil é um país de harmonia e que as pessoas e movimentos que lutam pela redução da desigualdade estrutural é que criam o ódio fica mais claro e pode ser contestado publicamente.

Pois o Brasil real, sem a capa de hipocrisia, é fratura e disputa. E é natural que seja assim.

O que todos devemos aprender é que essa disputa deve ser na arena pública e de forma democrática. E não através da violência e da intimidação.

Muita gente tem orgulho de ostentar determinados posicionamentos violentos, como se o direito à liberdade de expressão fosse absoluto (quem estuda 15 minutos sobre o tema ao invés de se informar apenas pelo WhatsApp sabe que não há direitos absolutos, nem mesmo à vida – caso contrário a legítima defesa não existiria). E que isso te concedesse o poder de reduzir os direitos de outras pessoas a pó sem consequências.

Não é uma tarefa fácil garantir um debate instigante, desafiador e plural até porque a novidade sempre tem seu charme. E a novidade agora não é mais a luta pela universalização de direitos. Parece que a moda é oprimir a minoria. Uma covardia, pois quem faz isso se furta a gracejar de banqueiros e donos de multinacionais.

Tenho a certeza, contudo, que ao conhecer o outro e ter por ele empatia ou ter acesso à informação de qualidade, muita gente pode se transformar. Afinal, milhões enxergam de olhos fechados.

E o que não for pelo consenso, que fique a cargo da boa e velha disputa na arena democrática.

Enfim, quando me falta horizonte, lembro de "A Igreja do Diabo", de Machado de Assis. Neste momento, parece que estamos fundando uma Igreja do Diabo. Mas pela consciência adquirida em debates e diálogos (que provoca um processo dialético) ou pela eterna contradição humana, as coisas vão mudar.

Seguem trechos do conto:

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas.

Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o Diabo.

Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno.

Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto