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Após financiar obras com impactos negativos, BNDES apoia projeto indígena

Leonardo Sakamoto

10/06/2015 17h48

Após financiar obras de impacto negativo sobre populações indígenas na Amazônia, pela primeira vez o BNDES dá um (pequeno) sinal na direção contrária: ao longo de três anos, vai repassar R$ 6,6 milhões ao povo Ashaninka, do Acre, para ajudar a protegerem seu território. O valor é uma migalha perto dos investimentos feitos em empreendimentos que causaram impactos negativos – equivale, por exemplo, a 0,02% do repasse total feito pelo banco às obras das usinas de Dardanelos (que atingiu o povo Arara), Teles Pires (os Munduruku) e Belo Monte (os povos do Xingu). A matéria é de Piero Locatelli, da Repórter Brasil.

Obras com selo do BNDES não têm boa fama entre os índios da Amazônia. Para ficar só no exemplo das hidrelétricas, a usina de Dardanelos soterrou túmulos dos indígenas Arara, a obra de Teles Pires dinamitou cachoeira sagrada para os Munduruku e Belo Monte vai secar rios fundamentais para a sobrevivência dos índios do Xingu. Todas elas tiveram a mesma fonte de financiamento, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

Agora, o banco dá um pequeno sinal na direção contrária: ao longo de três anos, vai repassar 6,6 milhões ao povo Ashaninka, do Acre. O valor é uma migalha perto dos investimentos em empreendimentos de impacto negativo, equivale a 0,02% do repasse total feito pelo banco às três usinas citadas acima.

Apesar da pequena escala, é a primeira vez que o BNDES investe diretamente em uma comunidade indígena, sem intermédio de órgãos públicos ou de ONGs. O investimento respondeu à demanda dos índios, que elaboraram o projeto de acordo com as suas necessidades.

O objetivo do projeto, assinado em abril deste ano, é a proteção da floresta onde vivem cerca de 1,2 mil Ashaninkas. Com o dinheiro do banco, os indígenas vigiarão a Terra Kampa Indígena do Rio Amônia, que fica na fronteira com o Peru e é invadida por madeireiros desde a década de 1980. A região também é rota de narcotraficantes que atravessam ilegalmente a fronteira entre os dois países.

O projeto responde a uma demanda urgente. Em setembro do ano passado, quatro índios peruanos da mesma etnia foram assassinados a caminho de uma reunião em uma aldeia brasileira. A investigação do caso não foi concluída, mas os indígenas suspeitam de madeireiros peruanos, de quem já haviam recebido ameaças. Antes do assassinato, os Ashaninka do Peru chegaram a confrontar os invasores da sua terra. "No nosso caso, a gente tem um cuidado de não enfrentar esses cabras," diz Francisco Piyako, liderança do povo Ashaninka e coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá.

Para ele está claro que, sem a ajuda dos índios, o Estado não consegue garantir a segurança da terra. "Em uma região como essa, o Estado brasileiro nunca vai fazer a vigilância se não tiver a comunidade local fazendo parte dela," explica.

No modo como é feita hoje, a ajuda do Estado é insuficiente. Isso leva diversos povos indígenas a fazerem a segurança das terras com suas próprias mãos, expulsando os criminosos. Ação que provoca a retaliação, fragilizando ainda mais a segurança das populações indígenas. Esta reportagem é parte de série da Repórter Brasil sobre este fenômeno.

Os Ashaninkas, porém, não pretendem entrar em conflito com os criminosos a exemplo de outros povos. "Por ter uma posição contrária [aos madeireiros e narcotraficantes], a gente corre o risco de eles matarem alguma liderança nossa," diz o indígena Francisco.

O dinheiro servirá para a construção de bases de monitoramento, além do treinamento dos indígenas e do transporte na região, feito principalmente em barcos. Os Ashaninkas devem repassar informações estratégicas à Funai, ao Ibama, à Polícia Federal e ao Exército.

O BNDES reconhece que esse apoio aos indígenas não será suficiente para interromper a invasão da terra. "Isso é uma coisa que os indígenas fazem há muito tempo, sem recursos humanos e financeiros. O que a gente consegue fazer é dar uma escala maior ao que eles já utilizam. E mesmo assim, ainda não é suficiente," diz Ana Paula Donato de Aquino, administradora do Fundo Amazônia.

Segurança sem conflito – Os indígenas também tentarão diminuir os conflitos ajudando as comunidades próximas a manterem a floresta em pé. O projeto prevê a plantação de espécies nativas nas áreas desgastadas da Terra Indígena e ao lado dela, na Reserva do Alto Juruá. Desta forma, as comunidades poderão ter lucro extraindo frutos das árvores, como o açaí, sem derrubar a floresta.

O financiamento também estimula que plantações dividam espaços com a floresta em locais determinados dentro das áreas protegidas. "Eles já têm essa experiência de sistemas agroflorestais, onde a mandioca convive ao lado de uma palmeira de açaí. O projeto busca dar elementos para que isso gere renda", diz Ana Paula.

Essa ajuda aos indígenas e à comunidade no entorno, que se se estabeleceu ali devido à exploração da seringa no século passado, devem ajudar a diminuir a pressão sobre a floresta. Segundo Francisco, isso também diminuirá a invasão da terra indígena e da reserva para a criação de gado. O banco tem feito ações semelhantes a esta como parte do Fundo Amazônia, criado para combater o desmatamento na região. O banco apoia indiretamente outros cinco povos indígenas, em um total de R$ 75 milhões junto ao financiamento dos Ashaninkas.

Se o tratamento aos indígenas é melhor, porém, o descaso do banco com a transparência continua o mesmo. O BNDES mantém sigiloso, por exemplo, informações sobre a construção de Belo Monte. Apesar de diversos pedidos, o plano de trabalho não foi repassado à reportagem. É nele que se pode descobrir os objetivos, as metas e os detalhes do projeto dos Ashaninkas. A assessoria argumenta que "os relatórios de análise são elaborados pelos técnicos do Banco para acompanhamento do trabalho interno. Não são públicos."

Apesar da falta de transparência no investimento público, por enquanto, as perspectivas com o projeto são otimistas. Gleyson Teixeira, da Comissão Pró-Índio do Acre, diz que o recurso pode promover alternativas econômicas de longo prazo, sem criar a dependência deles ao dinheiro e o abandono do seu modo de vida tradicional. "Isso não deve gerar o efeito colateral de alguns programas sociais, que fazem eles saírem da aldeia," diz Teixeira.

Resta saber se este projeto marcará o início de uma mudança no tratamento que o banco dá aos grandes projetos que afetam indígenas de toda a Amazônia.

Um pedido de socorro – Os Ashaninka foram surpreendidos, no ano passado, com o contato de indígenas isolados da etnia Xinane. Índios isolados são aqueles que optam por viver sem contato com outros povos. Após dias cercando a aldeia dos Ashaninka, os isolados atravessaram o rio e falaram muito, gesticulando com todo o corpo. Mas a tentativa de comunicação foi frustrada, já que os grupos não falam a mesma língua. Filmada por funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio), a cena gerou curiosidade e foi vista mais de dois milhões de vezes. O que fez os Xinane romper o isolamento e procurar os Ashaninka? O que eles tentavam dizer?

Meses depois, o mistério foi resolvido. Os Xinane contaram a intérpretes do governo que haviam sobrevivido a um violento ataque de não indígenas. A área de onde eles foram expulsos é alvo de narcotraficantes, que usam as terras indígenas como atalho entre o Peru e o Brasil. Mesmo problema que pressiona os Ashaninka. É ali, naquela região de difícil acesso, que a maioria dos indígenas isolados do país vive. Eles estão cada vez mais ameaçados pela pressão dos criminosos. O assunto foi tema de pesquisa da revista americana Science, que aponta a crescente pressão sobre essas populações. O artigo é crítico à lentidão e recursos cada vez mais parcos investidos pelo governo na Funai (fundação Nacional do Índio).

Apesar de compartilharem o território com os isolados, o projeto dos Ashaninka que será contemplado pelo BNDES não trata deste caso. O banco, porém, aprovou um projeto do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), que prevê a criação de um banco de dados sobre os indígenas isolados e o treinamento de funcionários da Funai e de indígenas em todo o país. Desde 1988, o governo segue a política de "não contato" com os isolados – ou seja, o direito deles escolherem com quem se relacionar, e mesmo se vão fazê-lo. Projetos como esse, juntos à minguante verba da Funai, servem para proteger esse direito. Se a proteção dessas terras não ocorrer, porém, os indígenas não terão sequer como escolher entre o contato e o isolamento.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto