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Tive uma visão: o Brasil deixou de ser um Estado laico

Leonardo Sakamoto

13/06/2015 10h42

Quando parlamentares entoaram uma oração no plenário da Câmara dos Deputados, como parte de um repúdio ao protesto de uma artista transexual, que simulou sua própria crucificação na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, tive uma síncope.

 

No intuito de esquecer aquilo, de repente um cheiro adocicado de erva queimada tomou conta de tudo, como se brumas me abraçassem, levando a outra dimensão. Daí, uma moleza gigante se apossou de mim, fazendo com que não conseguisse mais falar, apenas balbuciasse sons ininteligíveis e risse de tudo. Entrei, então em transe e, pasmem, tive uma visão.

E, na minha visão, o Brasil não era mais um país laico. Relato, sem delongas, o que vi:

Entrei no plenário da Câmara dos Deputados e havia um crucifixo, logo atrás da mesa diretora, olhando a tudo e todos. E um presidente, que se dizendo religioso, havia trazido para votação pautas que beneficiavam seu grupo e prejudicavam direitos.

Incomodado, fui ler as propostas de deputados. E um, que era de um partido que se afirma de esquerda, propôs mudar a Constituição Federal. Ao invés de "todo o poder emana do povo" converter para "todo o poder emana de Deus".

Assustado, atravessei a Praça dos Três Poderes, invadindo o Supremo Tribunal Federal. Percebi que lá também havia uma cruz acompanhando os trabalhos dos ministros.

Incrédulo, corri para o Palácio do Planalto. Mas Dilma não estava. Havia ido a São Paulo para inaugurar um templo.

Desesperado, entrei na internet para entender o que estava acontecendo e vi que fundamentalistas religiosos haviam conseguido retirar do plano nacional de educação a promoção da igualdade de gênero e de orientação sexual.

Anestesiado, abri um jornal e li a história de um médico que chamou a polícia depois de socorrer uma mulher que havia feito um aborto.

Amuado, ouvi o telefone tocar. Era um colega relatando a história de uma assessora de comunicação da Câmara dos Vereadores de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, ameaçada de demissão por ter afirmado que não acreditava em Deus.

Indignado, percebi que o trânsito estava o caos. Perguntei a uma motorista o que havia acontecido. E ela me explicou que era por conta da saída para o feriado prolongado de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

Cabisbaixo, vi na TV uma celebridade narrando o estupro a uma mãe de santo, sob gargalhadas da plateia. E, apesar dos indícios de crime de ódio, nada aconteceu.

Angustiado, por perceber que estava em uma teocracia, resolvi fazer a única coisa possível nessa hora: beber. Entrei no boteco, pedi uma caracu com ovo e canela. Na hora de pagar, notei uma estranha inscrição na nota de 20 mangos. Então, um calafrio percorreu a espinha. "Deus seja louvado." Gritei, esperneei, queria sair daquele pesadelo.

Deixei o transe.

Minutos depois, quando as brumas doces de erva queimada se dissipavam, senti uma fome incrível que foi saciada com chocolate com amendoim, pizza fria amanhecida, risoles de queijo com presunto e feijão frio, tudo junto e misturado.

Enquanto colocava o rango para dentro, diluindo com tubaína, fiquei feliz ao perceber que aquilo havia sido apenas uma bad trip.

Não era real. Não podia ser real. Pois o poder público não serve a uma crença religiosa no Brasil.

Afinal, o Brasil é um Estado laico. Com a graça de Deus.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto