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Pensei que era só um avatar qualquer, não uma pessoa com sentimentos

Leonardo Sakamoto

14/07/2015 11h45

Nunca me esquecerei da cara de pavor de alguns alunos quando expliquei que deveriam entrevistar dois ou três especialistas para fazer um determinado exercício no curso de jornalismo.

– Fêssor, tipo, entrevistar, tipo, assim, cara a cara?

Era turma de primeiro ano, então conceda-se um certo desconto diante da inexperiência. Contudo, aquele não era apenas um comportamento pontual de medo e vergonha diante do desconhecido. Eles realmente não entendiam o porquê de ter que ligar ou, pior, tentar entrevistar frente a frente outra pessoa.

Sentiam-se incomodados de ter que conversar em um ambiente "inóspito", sem poderem pensar, com calma, cada pergunta, ou terem tempo para refletir as respostas sem "passar vexame". Ou seja, sem a parte lúdica – e deliciosa – de uma boa entrevista em que os dois lados estão bem preparados.

Nem mesmo explicações, exemplos e depoimentos de outros profissionais explicando que o corpo inteiro fala em uma entrevista e não apenas a boca foi suficiente para fazer alguns mudarem de ideia. Já muitos jovens colegas reclamarem que suas fontes se negam a responder longas entrevistas por e-mail, chamando-as de "preguiçosas" (suspiro…)

Quem lê este blog sabe que sou defensor de que um novo jornalismo, mais democrático do que o atual, vai surgir dos escombros da revolução digital. E também sabem as preocupações que tenho com relação à má qualidade da informação circulando e a quantidade de mentiras, boatos, fofocas criados para deformar e confundir – presentes neste momento de transição em que vivemos.

A popularização da rede estreitou laços, juntou pessoas, conectou ideias, diminuiu distâncias (e todo esse blablablá que vocês ouvem em comerciais de operadores de celular que querem vender "internet ilimitada"). Está transformando as relações humanas.

A capacidade de reconhecer-se em outro ser humano, entender suas dores, sofrimentos e sua complexidade, ganhou muito com a internet através da aproximação de grupos que viviam apartados e, conectando-se, juntaram-se para lutar pelos seus direitos. Mas isso é faca com duas lâminas: de um lado aproxima, de outro, afasta.

A comunicação cara a cara e toda a sua complexidade, por vezes, é preterida diante do anteparo protetor da internet. Que pode garantir a segurança desejada pelo interlocutor, mas torna ele menos propenso a sentir o outro e, talvez, mudar de opinião sobre certo assunto. Nesse sentido, a internet pode se tornar um púlpito de onde se fala, mas não se ouve.

A Folha de S.Paulo publicou, nesta terça (14), uma matéria sobre términos de namoro através de mensagens pelo celular, redes sociais ou aplicativos. A tentativa de se isolar para garantir mais "sinceridade" e não "machucar a outra pessoa" tem boa intenção, ainda mais quando se tem dificuldade de expressar os sentimentos. E claramente é melhor do que enrolar o parceiro ou parceira por tempo indeterminado.

Mas também pode ter consequências ruins. "Estamos perdendo a habilidade de escutar o outro, deixando de desenvolver empatia e a capacidade de lidar com as próprias emoções. Se fugirmos dos términos, não vamos aprender isso nunca. Não podemos resolver tudo por WhatsApp", afirma a psicóloga Dora Sampaio Góes, do Grupo de Dependência de Internet do Hospital das Clínicas, na matéria assinada por Juliana Vines.

Parte da discussão sobre o ódio na internet tem relação com isso. Xingo, insulto, minto, difamo, ameaço não apenas porque me sinto protegido por um pretenso anonimato, mas também pelo fato de que não vejo o meu interlocutor frente a frente. Ele é um avatar com nome desconhecido, não uma pessoa com sentimentos.

Tanto que alguns seres bizarros das redes sociais são afáveis e educados no mundo analógico. A menos que estejam em turba, daí é outra história.

Já tive a oportunidade de cobrir diversos conflitos armados fora do Brasil. E posso garantir que uma das melhores formas que jornalistas encontram para contribuir com o fim de uma guerra sempre foi mostrar os rostos e histórias que estão por trás dela.

Políticos e militares tentam desumanizar o processo para tornar o ato de matar e invadir mais fácil. Na Guerra do Golfo, na década de 90, por exemplo, emissoras de TV norte-americanas transmitiam os bombardeios a alvos "militares" iraquianos através de imagens por satélites ou dos aviões, como se fosse uma grande videogame. A guerra, que é a coisa mais suja do mundo, tornava-se asséptica e, portanto, mais palatável.

Com a diferença que mortes não podem ser revertidas dando "start" de novo.

Quando você gera empatia com outro povo ou grupo social, as coisas mudam. Fica mais difícil puxar o gatilho.

O mesmo ocorre com vítimas da intolerância dentro do país. Bater em alguém por homofobia é mais fácil do que defender que alguém espanque o seu irmão se ele sair do armário. Defender que uma mulher anônima que aborte vá para a cadeia é mais simples do que denunciar a própria filha por ela ter abortado ilegalmente.

A dureza da lei e a severidade da punição depende do quanto você está distante da outra pessoa. Simples assim. Por isso mesmo, redução da maioridade penal para o filho dos outros é refresco.

Ainda é cedo para dizer se todas essas mudanças no comportamento humano causadas pela simbiose com a tecnologia da comunicação trarão ganhos maiores do que as perdas sobre a nossa capacidade de entender o outro.

Apoio radicalmente certas transformações e estranho algumas outras, por se chocarem com o mundo que eu conhecia até então. Mas sei que se as novas gerações conseguirem tornar este um lugar melhor usando uma nova codificação para comunicação, não importa qual, ótimo.

Não serei eu, um velho de 38 anos, que vai ficar de mimimi.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto