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Crise econômica: Você já foi trocado por um estagiário?

Leonardo Sakamoto

26/07/2015 12h52

Com a crise econômica, cresce o número de empresas que contratam estagiários para cumprir funções que, antes, eram de empregados formados. Muitos jovens ficam felizes com a oportunidade, sem se atentar para o fato de que, em breve, serão trocados por carne fresca.

Lembro de uma de minhas turmas de jornalismo que, em determinado momento do curso, estava bem animada com os estágios em grandes veículos de comunicação. Próximo da formatura, contudo, um desânimo generalizado tomou conta ao perceberem que praticamente ninguém seria efetivado e que o mercado de trabalho do jornalismo era (como ainda é) um rascunho do mapa do inferno.

Tempos atrás um programador norte-americano terceirizou para uma empresa chinesa o próprio trabalho, pagando um quinto do seu salário, enquanto passava o dia curtindo (posts e retuitando) a vida adoidado. Ganhava centenas de milhares de dólares anuais, seu trabalho era considerado excelente e a performance tida como a melhor de todo o escritório.

O espertinho norte-americano, que não trabalharia mais para a empresa, estava simplesmente colocando em prática o que o bizarro sistema produtivo de seu país lhe ensinou desde pequeno. Terceirize e contrate alguém com menos direitos sob a justificativa de que você está procurando competitividade. O problema é que algumas normas valem apenas para o andar de cima.

No final de 2013, a Suíça realizou um referendo (eles fazem consultas populares para tudo) sobre um projeto de lei polêmico. Se aprovado, nenhum executivo ganharia em um mês mais do que qualquer outro empregado de uma empresa em um ano. Isso não incluía salários de pessoas em treinamento e os estagiários, por exemplo. E, é claro, levaria em consideração questões de tempo parcial e trabalho temporário.

Claro que não passou. No início, contava com a simpatia da população, Daí entidades empresariais fizeram uma intensa campanha, dizendo que isso levaria a uma migração de empresas do país e reduziria a arrecadação.

Mas o debate é útil em momentos de crise econômica, quando assistimos a executivos de grandes empresas – que foram beneficiadas por desonerações ou subsídios governamentais para que não quebrassem – ganharem bônus milionários.

Na época da Crise de 1929, era mais frequente barões do Café pularem para o nada do alto de seus casarões na avenida Paulista. Hoje, isso é mais raro. Até porque o Estado (no Brasil ou nos Estados Unidos) dá aquela ajuda amiga e investe dinheiro público para sanar a incompetência privada – sendo que os lucros futuros, após a crise, não serão socializados. Quer investindo em qualidade de vida de sua força de trabalho, quer atuando junto às suas cadeias produtivas e aos stakeholders para diminuir o impacto negativo de sua atividade na sociedade (vale explicar antes que alguém com problema de interpretação de textos diga que estou falando em distribuir dinheiro). As montadoras que o digam…

Pelo contrário, crises são usadas como justificativa para precarizar ainda mais direitos. Por exemplo, uma das principais metas, neste momento, é legalizar a terceirização da atividade-fim e afastar o risco de responsabilização solidária dos contratadores de serviços terceirizados em caso de flagrantes de irregularidades. Traduzindo: Em nome da competitividade, nós não te pagaremos mais direitos trabalhistas e previdenciários, mas você continuará recebendo ordens nossas.

Particularmente, não quero uma sociedade em que um estagiário de direito ou de jornalismo saia da faculdade às 23h e volte correndo para o escritório, mesmo tendo trabalhado o dia inteiro, a fim de ganhar uma merreca no final do mês e poder dizer, de boca cheia, que aprendeu. Aprendeu várias coisas, entre elas a explorar outra pessoa no futuro.

De uma forma ou de outra, as regras, públicas e privadas, se organizam para defender o patrimônio de quem muito já tem. Exatamente o grupo que, por ter colchão de amortecimento, ao contrário da maior parte do andar de baixo e da classe média, passa mais tranquilo por esse período sombrio.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto