Traficar pessoas é mais grave do que drogas. Mas quem se importa?
Leonardo Sakamoto
30/07/2015 09h09
O tráfico de seres humanos para trabalho escravo, exploração sexual, remoção de órgãos, mendicância forçada, adoção ilegal e casamento forçado é um dos crimes mais lucrativos do mundo. Apesar disso, ele ganha muito menos destaque nos noticiários brasileiros do que o tráfico de drogas ou de armas.
Ao mesmo tempo, nós jornalistas cobrimos mal o tema, sendo pautados pelo governo, Justiça, polícia ou novelas e não tomando a dianteira em propor análises e investigações por conta própria. Isso sem contar que, involuntariamente, por causa da falta de formação e informação, a sociedade acaba por perpetuar determinados preconceitos.
Preconceitos e equívocos como:
– Apenas mulheres são vítimas de tráfico para exploração sexual;
– Esse problema envolve apenas brasileiras no exterior;
– Só grandes máfias controlam o comércio de gente;
– Somente pessoas pobres e ingênuas tornam-se vítimas;
– Todo boliviano trabalhando em oficina de costura de São Paulo é vítima de trabalho escravo.
Trabalhadores vítimas do tráfico de pessoas para o trabalho escravo são resgatados no Pará (Foto: Leonardo Sakamoto)
Nesta quinta (30), celebra-se o Dia Mundial de Combate ao Tráfico de Pessoas. Por isso, resolvi recomendar novamente duas publicações. A pesquisa "Tráfico de pessoas na imprensa brasileira" , desenvolvida pela Repórter Brasil, com recursos do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e o apoio do Ministério da Justiça, no ano passado, aponta que o tema ainda não recebe atenção suficiente por parte da mídia.
De 655 textos que saíram nos maiores veículos da imprensa sobre o tema desde 2006, 57% apenas menciona o tráfico de pessoas, não raro de forma equivocada, misturando conceitos e interpretações. Entre os 43% restantes, a maioria (54%) não trata de causas ou contextualiza a questão e boa parte (44%) é focada apenas no tráfico para fins de exploração sexual.
A cobertura se baseia na agenda governamental ou em ações policiais e em muitos casos limita-se a aspectos criminais, sem os aprofundamentos necessários para tratar de um fenômeno complexo, multifacetado e dinâmico, com diferentes modalidades, causas e consequências.
Não admira, portanto, que a percepção popular para a solução é mandar todos os envolvidos para o xilindró. Punir com prisão é importante, mas reduzir todas as medidas a essa é uma visão simplista de um problema estrutural.
Para melhorar a cobertura do fenômeno, sugiro o "Guia para jornalistas com referências e informações sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas", um guia com referências, informações e fontes sobre o enfrentamento ao problema para ajudar jornalistas, profissionais de comunicação do poder público, empresas e organizações não-governamentais e interessados em geral a tratarem do tema.
A publicação destaca que o Brasil é país de origem, trânsito e destino de tráfico de pessoas, o que torna a cobertura complexa. Às pessoas preocupadas em acompanhar a questão, o guia recomenda focar direitos humanos, contextualizar e acompanhar políticas de prevenção, diversificar fontes e ter atenção para identificar novas modalidades de tráfico.
Por se tratar de um fenômeno clandestino e de difícil mensuração, é preciso ter cuidado com números e estatísticas, e com os mitos e estereótipos que ainda são comuns e mais atrapalham do que ajudam no entendimento sobre o tema – pois, em tese, qualquer pessoa pode ser traficada. Ao aprofundar a questão é preciso sensibilidade com vítimas, que não devem ser tratadas como coitadas, inocentes, ignorantes, mas como sujeitos de direitos que merecem respeito.
Também vale cuidado redobrado em casos que envolvem crianças e adolescentes, e estar atento a termos inadequados (o guia traz diversos exemplos). Outras recomendações são ter a perspectiva de gênero e lembrar que diferenças sexuais são produtoras de desigualdades sociais; entender migração como um direito humano; e considerar que a prostituição não é crime no Brasil.
Para saber mais sobre o tráfico de pessoas, veja o vídeo abaixo:
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.