Escolas devem combater homofobia que vem de casa, diz especialista da ONU
Leonardo Sakamoto
06/08/2015 13h15
"Crianças podem aprender atitudes homofóbicas de seus pais, mas as escolas devem fazer todo o possível para combater os estereótipos negativos e promover a aceitação." A análise é de Charles Radcliffe, chefe da seção de assuntos globais do escritório para direitos humanos da ONU em Nova York. Pertinente para este momento em que se discute, no Brasil, se esse assunto deve ou não ser tratado em sala de aula.
Charled também é conselheiro sobre orientação sexual e identidade de gênero nas Nações Unidas, atuando para conscientizar sobre a violência contra lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais. Ele, que também possui uma página sobre o tema no Huffington Post, falou a este blog sobre as conquistas dos últimos anos – e a reação conservadora.
Segundo ele, essa reação à efetivação de direitos LGBT é consequência do sucesso do próprio movimento. "Isso enfurece aqueles que nunca quiseram que esse dia chegasse e, agora, sentem o chão, que eles pensavam que era sólido, desaparecer sob seus pés." Para ele, tanto o movimento LGBT quanto o "outro lado" estão mais fluentes, organizados e conectados do que nunca.
Charles afirma que as "bolhas digitais" em que vivemos contribuem para dificultar o diálogo e a tolerância: "Independentemente da abordagem adotada para o tratamento de ódio on-line, a internet nos lança um desafio: cada vez mais pessoas obtêm suas notícias de fontes on-line que partilham a sua própria visão de mundo e espelham os seus próprios preconceitos e prioridades. Isso torna mais difícil alcançar pessoas com uma mensagem anti-homofobia, pela igualdade de gênero ou contra o racismo – mensagem contra a qual elas vão instintivamente resistir".
Blog – Decisões na Suprema Corte dos Estados Unidos e do Brasil, referendo na Irlanda. Há alguma razão para o casamento gays e lésbico estar sendo efetivado em locais diferentes do mundo ou é apenas coincidência?
Charles Radcliffe – Casamento fala de um desejo humano básico e largamente compartilhado: dividir sua vida com alguém e se comprometer a cuidar um do outro. Os opositores, muitas vezes, tentam apresentar o casamento igualitário como parte de uma agenda gay radical. Na verdade, ele é baseado em valores muito tradicionais. Na Irlanda, você tinha avós católicas batendo nas portas pedindo para as pessoas votarem para que seus netos pudessem se casar. Esta é uma causa que tem reuniu os membros da comunidade LGBT e seus pais, parentes, amigos, vizinhos e colegas heterossexuais que conseguem, em algum nível, se relacionar com o desejo de amar e ser amado de volta.
Esses avanços recentes sobre o casamento não aconteceram do dia para a noite. Em cada país onde temos visto essa mudança – seja através de tribunais, do parlamento ou, no caso irlandês, de um referendo – tem sido parte de uma mudança de longo prazo, que começou há décadas. Talvez o fator mais importante nesse processo tenha sido a crescente visibilidade e conhecimento por parte da comunidade LGBT. As atitudes públicas têm mudado à medida em que mais e mais gays e lésbicas têm saído do armário e sido aceitos por quem está à sua volta – primeiro por suas próprias famílias e amigos e, gradualmente, na comunidade em geral. Ao mesmo tempo, em todos estes países, a igualdade no casamento foi precedida por outras mudanças na lei, bem como na cultura popular e no retrato que a mídia faz das pessoas LGBT.
Mas, mesmo após as recentes vitórias, o casamento igualitário não está nem no horizonte da maioria dos países e a maioria dos ativistas irá te dizer que a sua prioridade é combater a violência, a criminalização, a perseguição da polícia e a negação de serviços básicos para as pessoas LGBT – incluindo saúde e moradia. Em termos de direito internacional, cabe a cada país decidir se quer ou não permitir que casais do mesmo sexo se casem, e países diferentes irão se mover em velocidades diferentes sobre este assunto. Mas, independentemente disso, todos, sem exceção, são obrigados a tomar medidas para combater a violência e discriminação.
Charles Radcliffe é chefe da seção de assuntos globais para direitos humanos da ONU em Nova York Foto e conselheiro sobre orientação sexual e gênero nas Nações Unidas (Foto: UN Photo/Evan Schneider)
Atos de violência que têm sido observados contra pessoas LGBT fazem parte de um despertar de movimentos ultraconservadores em todo o mundo?
Progresso quase nunca vem sem reação. A mesma coisa que está impulsionando por mudanças – primeiro a visibilidade gay e, mais recentemente LGBT em geral – também instiga resistência. Os movimentos LGBT são, hoje, mais fluentes, melhor organizados e mais conectados com o que está acontecendo no resto do mundo do que nunca. Mas o mesmo é verdade para o "outro lado". Isto não é surpreendente e não é razão para se retirar de volta ao silêncio, mas é uma realidade a ser considerada.
De certa forma, você poderia dizer que essa reação é a prova do sucesso LGBT. Em muitos países, a opinião pública se tornou mais receptiva a essa população e novas leis foram introduzidas para proteger seus direitos. Isso enfurece aqueles que nunca quiseram que esse dia chegasse e, agora, sentem o chão, que eles pensavam que era sólido, desaparecer sob seus pés.
Na ONU, os velhos tempos, quando países hostis aos direitos das pessoas LGBT conseguiam reunir uma grande maioria de nações, são águas passadas. Hoje, mais países apoiam o trabalho das Nações Unidas para expor e combater as violações a esses direitos e estão pressionando para que todos os Estados-membros façam mais a fim de acabar com os abusos. Isso não significa que a oposição tem aceitado isso. Seus números podem ter erodido, mas países que se opõem a abordar questões LGBT no âmbito da ONU são tão determinados como sempre foram.
Uma jovem de 16 anos que havia sido esfaqueada na Parada do Orgulho LGBT de Jerusalém morreu por causa dos ferimentos. O ato teria sido cometido por um judeu ultraortodoxo, que já havia cumprido pena por um ato semelhante. Verificam-se esforços, em vários países, para criar políticas que punam a homofobia, mas não suas causas. Por que?
O assassinato de Shira Banki na Jerusalém Pride é horrível em vários aspectos. Primeiro, é claro, para sua família e amigos. Mas também porque são as Shira Bankis que estão ajudando a tornar as coisas melhores para muitos na comunidade LGBT: são os jovens que se envolvem em debates, que abraçam a diversidade e que estão com seus amigos LGBT.
Além disso, o homem que a teria esfaqueado havia sido recentemente libertado, depois de dez anos na prisão por realizar um ataque semelhante em uma parada em 2005. No seu caso, como em outros, a punição não fez nada para extinguir o ódio que ele carregava. É um lembrete desconfortável de que você não pode eliminar o ódio apenas através do sistema de justiça criminal. Sem outras medidas, processar e prender os autores desses ataques não vai proteger as pessoas LGBT da violência.
O que nos leva à sua pergunta sobre causas, não apenas consequências. Muito trabalho bom tem sido feito área da educação pública, em grande parte por organizações da sociedade civil. Ironicamente, há alguns exemplos excelentes de iniciativas educacionais em Israel, embora não tenham impedido o ataque em Jerusalém. Os governos devem desempenhar um papel ativo, incluindo a eliminação de fontes que perpetuem estereótipos negativos sempre que possível. Crianças podem aprender atitudes homofóbicas de seus pais, mas as escolas devem fazer todo o possível para combater os estereótipos negativos e promover a aceitação, da mesma forma que a mídia. Deveria haver punições para quem incita o ódio contra as pessoas LGBT – ódio que continua sem controle em muitos países.
Essa falta de controle está diretamente relacionada a não comprar briga com dogmas das três grandes religiões monoteístas (cristianismo, islamismo e judaísmo)?
Embora muitas vozes religiosas defendam a inclusão, não raro são as vozes de ódio que falam mais alto. Em alguns casos, líderes religiosos contribuem ativamente para um clima de medo e de violência homofóbica com uma retórica que demoniza e desumaniza as pessoas LGBT.
Deve haver uma maneira de lidar com essa difusão de ódio sem pisotear o direito à liberdade de crença religiosa. Para fazer isso, você precisa primeiro localizar a linha entre liberdade de expressão e incitação ao ódio. Líderes religiosos antigay e seus seguidores têm direito às suas opiniões – não importa o quão a sua distorcida interpretação da religião possa parecer ofensiva e quão ofensivas sejam suas opiniões. Se alguém quiser desaprovar as pessoas LGBT, que desaprove. Se a homossexualidade for repugnante para eles, então que assim seja.
Mas isso não significa que não há limite. Você pode ser livre para viver sua própria vida de acordo com qualquer conjunto de crenças e valores que funcionem para você, mas você não é livre para forçar os outros a viver por eles. E mesmo se você pense que seus pontos de vista são justificados pela religião, nada lhe dá o direito de atacar ou incitar o ódio ou violência contra os outros só porque eles são diferentes de você ou pensam de forma diferente. Religião, cultura e tradição não são uma desculpa válida para abusar dos direitos humanos de outras pessoas.
No Brasil, ao mesmo tempo em que cresce o número de casos de violência contra homossexuais e transexuais, aumenta a presença de discursos de ódio de certas denominações religiosas através de compra de espaço em rádio e TV.
Eu não vi dados sobre isso em outros países, por isso é difícil saber com certeza. Mas isso remete ao ponto anterior sobre grupos conservadores mobilizando resistência em face do sucesso LGBT. Não há nada de errado com denominações religiosas cristãs que usam rádio para difundir uma mensagem, mas o governo deve intervir e certificar-se de que as liberdades religiosas não são utilizadas como cobertura para o discurso do ódio.
Não devemos permitir que este confronto seja visto como a Comunidade da Fé contra a Comunidade LGBT. O fato é que muitas pessoas LGBT são elas próprias religiosas e muitas pessoas religiosas defendem uma maior aceitação das pessoas LGBT. O arcebispo Desmond Tutu [ganhador do Prêmio Nobel da Paz por sua luta contra o regime de segregação racial do apartheid na África do Sul] é um exemplo inspirador a esse respeito. Quando ele nos ajudou a lançar a campanha contra a homofobia ONU Livre & Igual, explicou que era precisamente sua fé que o levou a essa causa. Precisamos de mais Desmond Tutus e nós precisamos deles no rádio com mais frequência em mais países!
A internet conectou pessoas. Isso, por um lado, ajudou a diminuiu alguns preconceitos, por outro, fez circular discursos de ódio. Você tem um blog importante. Como é possível explorar o potencial bom da internet e limitar seus instrumentos de intolerância?
As mesmas regras que se aplicam off-line deveriam ser aplicadas on-line: liberdade de expressão, não discurso de ódio. A liberdade de expressão é um direito fundamental, mas não é sem restrições: ele não se estende a expressões de opinião que incitem o ódio ou a violência contra os outros. Uma dificuldade a mais na internet é que, muitas vezes, é difícil localizar a fonte do discurso do ódio – mas há tecnologia para tanto. As pessoas devem ser capazes de denunciar casos de discurso de ódio às autoridades e esperar que medidas sejam tomadas.
As leis nacionais variam enormemente. Muitos países penalizam o discurso do ódio, mas diferentes países tipificam esse delito de forma diferente. Os Estados Unidos, com suas proteções da Primeira Emenda, destaca-se como uma exceção nesse domínio: nos EUA, a maior parte do discurso de ódio segue sem sanções enquanto quem o profere não estiver ameaçando ou incitando a uma iminente violência física.
Independentemente da abordagem adotada para o tratamento de ódio on-line, a internet nos lança um desafio: cada vez mais pessoas obtêm suas notícias das fontes on-line que partilham a sua própria visão de mundo e espelham os seus próprios preconceitos e prioridades. Isso torna mais difícil alcançar pessoas com uma mensagem anti-homofobia, pela igualdade de gênero ou contra o racismo – mensagem contra a qual eles vão instintivamente resistir.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.