Como explicar a seus filhos que você não acredita em Deus?
Leonardo Sakamoto
09/08/2015 14h22
Um amigo me escreveu, neste domingo de manhã, dizendo que seu filho começou a perguntar sobre Deus – e não quis mais parar. Por que não havia crucifixos pela casa, por que ele não ia à missa ou aos cultos como os pais dos outros coleguinhas e, básico, se o pai acreditava que os meninos maus iam para o inferno. Seria algo costumeiro na vida de uma família média brasileira se não fosse pelo fato de que tanto ele quanto a mãe do pequeno inquisidor não acreditarem em absolutamente nada – vida após a morte, divindades, inteligência criadora do cosmos, o Palmeiras, nada.
"Foi um belo presente do Dia dos Pais", ironizou com graça.
Para ajuda-lo, resgato uma história que publiquei aqui tá um tempo: Estava sentado à mesa de um restaurante com a mãe, o pai e a irmã, menor que ele, neste final de semana, em São Paulo. Do nada, virou para o pai, disparando: "O senhor não acredita em Deus, né?" Eu, que observava na mesa ao lado, achei graça na pergunta. Não foi uma cobrança, mas um simples questionamento, daqueles grandes e sinceros.
Daí, na época, resolvi perguntar a sábias amigas e mães (algumas religiosas, outras não) como é possível explicar que não se acredita ha existência de Deus em uma sociedade como a nossa.
Afinal de contas, por mais que não haja provas materiais, atestar a existência do divino é fácil, está no automático. Ou seja, se você não fizer nada, alguém fará por você. E, talvez, trazendo junto um tipo de fé distorcida, cheia de medo e culpa, que contribuirá com adultos violentos e intolerantes – diferente daquilo que, certamente, uma pessoa com o mínimo de bom senso esperaria para seus filhos.
Vejam as respostas:
"Olha, tem uma definição que não é minha, mas achei tão linda que acho que pode caber. Quem me disse foi o querido padre Júlio Lancelotti. Sim, eu sei. Você me pede a não existência de Deus, e não o contrário. Mas a historinha é mais ou menos assim, me diz se serve: Certa vez, no meio de uma rebelião, um menino da antiga Febem, perguntou ao padre Júlio se Deus existia. Porque para ele, afinal, Deus era um engodo. Com menos de oito anos, o menino havia sido vítima de toda a sorte de violência, só conhecia dor e sofrimento nesta vida. Onde estava Deus para este menino? Então o padre Júlio respondeu mais ou menos assim: "Esqueça aquele velhinho barbudo que vive sentado no céu. Ele não existe. O que existe, querido, é o amor que sentimos por alguém nesta vida. Você gosta de alguém, assim, muito, muito? Pode ser qualquer pessoa. Ou um cachorrinho, quem sabe. Gosta? Então você sabe o que é Deus. O resto é bobagem". O menino respondeu que a única pessoa que ele gostava era ele, o padre Júlio…"
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"Quando meu filho me perguntou se tinha mesmo um papai do céu que tinha criado o mundo, eu falei que a vovó acreditava que sim, por isso ela ia na igreja conversar com ele. Mas que eu não tinha tanta certeza quanto a vovó. Falei também que se a gente faz as coisas direitinho, coisas boas acontecem com a gente também. Ele tinha 5 anos e isso foi o suficiente."
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"Lá em casa acho q isso vai ser uma questão porque meu marido se diz ateu e é cético mesmo. Mas eu acredito nas energias, nas vibrações, na força da mente humana… Digo que deus é o ser humano, o amor, o respeito, enfim… Ainda vamos ter esta conversa mas não batizamos, nem vamos seguir nenhuma religião, claro, porque nisso temos acordo! E aí, acho que – de novo – falando de bicão porque não vivi isso ainda, o lance é conversar e dizer que cada um acredita em uma coisa mas nós não acreditamos. E, ainda, claro, dizer que ele pode acreditar se quiser, quando puder conhecer melhor e elaborar isso. Acho que o lance é, como em outras questões, passar para ele as informações para quando tiver condição tomar a própria decisão.
O mesmo não vale para o time de futebol, claro."
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"Acho que é explicando a existência de muitos deuses para essas crianças. Se as pessoas acreditam em um deus ou num panteão de deuses (e estamos falando da maioria da população) como negar a existência de tais deuses? Eles existem, estão aí. O importante é não permitir que o Estado escolha um deus hegemônico que dite as regras. Ou um grupo ver-se no direito de aniquilar cultos ou pessoas em função de suas crenças e hábitos religiosos. As crianças compreendem e respeitam a pluralidade muito melhor que os adultos, pois são capazes de fantasiar e acreditar na fantasia do outro tanto como na sua, inventam mundos a cada instante. Pensando bem, a questão é como explicar a não existência de um único Deus para os adultos, não para as crianças. E sobre isso as religiões de matriz africana tem muito a ensinar."
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"A gente nunca falou sobre Deus com o nosso filho. Ele já perguntou o que é religião: a gente disse que era uma coisa que as pessoas usavam para ficar mais tranquilas quando ficavam com medo de morrer. Ele perguntou se a gente tinha uma, a gente disse que não, mas que não era problema ele ter, se um dia quisesse. Só ia ter de escolher mais velho, não agora. E que, nem eu, nem o pai dele acreditamos em nada disso. Mas cada um escolhe seu caminho."
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"Outro dia minha filha me falou, diante de alguma cotidiana dificuldade, 'mãe, tem que pedir para o papai do céu'. Gelei e perguntei quem tinha falado isso para ela, eu ou o pai com certeza não diríamos – ou pelo menos não daquele jeito, como se Deus fosse algum 'atendente'. Perguntei e ela falou algo sobre a avó ou a tia de mais idade terem lhe contado sobre o 'papai do céu. Ela tem três anos e pensei num discurso ecumênico mas logo abandonei, achei difícil. Guardei o assunto para depois e creio que daqui um tempo vou sim explicar que não se sabe da existência de Deus, que uns acreditam mas que outros não e isso é normal. Pensei em falar da evolução, dos macacos. mas tenho até medo de uma criança achar isso tão mais lógico do que toda a ideia de Deus que passe a adotá-la sem nem ao menos conceber que é possível acreditar em Deus. Sei lá, tô mais pronta para conversa das flores e abelhas. Eu acho que se eu puder ao menos convencê-la de que é normal a discordância sobre o assunto, algo sobre tolerância, já me sentiria aliviada. Se chegar ao ponto da pressão total, e ela perguntar o que eu acho, vou dizer a verdade: que às vezes acredito e outras não, mas que ela pode ter a própria opinião."
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Como terminou a história no restaurante? Os pais disseram a ele com muita calma: "Tem pessoas que acreditam, outras que não acreditam. Mas o importante, de verdade, é que a pessoa tenha um coração bom".
Sei que as perguntas deles não vão terminar com essa resposta, pelo contrário, vão apenas começar. Mas foi um bom começo. É quase uma declaração de princípios, de que a diferença é normal – coisa que falta em muitos lugares hoje em dia.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.