"Por que não mataram todos em 1964?"
Leonardo Sakamoto
16/08/2015 22h26
Um aluno me perguntou, tempos atrás, se eu não achava exagero tanta gente falar sobre o golpe de 1964.
Em sua opinião ("Já deu, né?"), o assunto é chato e ele e seus amigos não aguentam mais. Além disso, era muita história triste e isso cansava.
(Ainda bem que era só um futuro jornalista. Nada com o qual devemos nos preocupar.)
É claro que a história poderia ser contada e analisada de uma maneira mais interessante do que é feito hoje, tanto por muitas escolas quanto pela mídia. A fim de que crianças e adolescentes sejam levados a compreender qual a utilidade de se conhecer os caminhos já trilhados pelos que vieram antes deles para não repetir os mesmos erros.
Perceber que o mundo não começa com seu nascimento, nem vai se exaurir com a sua morte.
O golpe e a ditadura cívico-militar ainda são temas que não fazem parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser democracias. Deveriam ser mais presentes nos debates escolares porque suas consequências estão aí no nosso dia a dia.
Lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente.
Uma ferida que cheira mal e não deveria ser escondida, mas permanecer como algo incômodo, à vista de todos, funcionando como um lembrete. Porque ela nunca foi devidamente curada.
Demonstrações de afeto a um período autoritário deveriam ser peça de museu. Mas não são. E tem gente com um parafuso a menos que tem coragem de pedir tortura, morte e volta da ditadura. Despertando a indignação de quem lutou para por um fim a ela e que hoje protesta na oposição, está no governo ou em nenhum dos dois.
Mas os responsáveis pela parte mais sombria da ditadura, seus aliados e seguidores precisam saber que a sua versão da História – de que duas décadas de assassinatos, censura e violência foram necessárias para o bem da coletividade – não vai vingar. Pois não agiram pelo bem do Brasil. Mataram, roubaram e calaram para o bem de si mesmos
E saber também que o desrespeito aos direitos fundamentais que a ditadura deles ajudou a manter, mais cedo ou mais tarde, vai embora com eles.
Não por vingança, mas por Justiça.
Pois, em nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido e anistiado permanece nos assombrando.
Seja através de um olhar perdido de uma mãe de um amigo que, da janela, permanece a esperar o marido que jaz no fundo do mar, lançado de um helicóptero.
Seja no silêncio dolorido de uma jovem que foi estuprada diariamente com cassetete para contar aquilo que não sabia.
Seja pelos pesadelos de um ex-professor que levou choques com fios enfiados no ânus e na uretra porque tinha os livros errados.
E assombrando as pessoas que, hoje, diariamente, sofrem nas mãos da banda podre da polícia que adota métodos universalizados na ditadura a fim de garantir a ordem (nas periferias das grandes cidades) e o progresso (na região rural). Onde se mata negros e pobres, porque a vida deles não vale nada.
Durante a Gloriosa, os militares armaram uma farsa para encobrir o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. A explicação trazida à público, de suicídio na cela, não convenceu e a morte de Vlado tornou-se símbolo na luta contra o regime. Mas fez escola.
Em São Paulo, um homem de 39 anos foi encontrado enforcado pouco mais de duas horas depois de ter sido preso.
Supostamente, era traficante e transportava cocaína.
Supostamente, teria se enforcado usando um cadarço de sapato.
Questionado por jornalistas se não é praxe da polícia retirar os cadarços de sapatos de presos, um policial afirmou que o acusado usou um pedaço de papelão para arrastar um cadarço que estava fora da cela. A justificativa seria cômica, se não fosse ofensiva.
Como aqui já disse, o impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, em manifestações que pedem direitos sociais, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando ou reprimindo parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).
A verdade é que não queremos olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje.
Lembrar é fundamental para que não deixemos certas coisas acontecerem novamente.
Enfrentar com fatos, argumentos, fotos, vídeos e relatórios quem defende essas práticas ou quem as praticou é um dever de qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento sobre a História e decência.
Aliás, o conhecimento de História não é um dádiva, mas sim uma maldição. Porque você se torna responsável por dialogar com quem a ignora, por mais impossível que isso pareça ser. Um diálogo paciente e não-violento, na esperança de que entendam que a dignidade humana, construção de milhares de anos dessa História, é uma conquista que deve ser defendida a todo o custo.
Como aqui já disse, que os assassinatos sob responsabilidade da ditadura sejam conhecidos e contados nas escolas até entrar nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada.
Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.
Observação: Atualizei um texto que já havia sido publicado aqui. Achei pertinente trazê-lo novamente.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.