Se o dinheiro não vê fronteiras, por que as erguemos para os trabalhadores?
Leonardo Sakamoto
28/08/2015 16h24
Não existe imigrante ilegal. Pois não existem seres humanos ilegais. O que temos, por força das fronteiras, são pessoas que não possuem os documentos de entrada ou de trabalho exigidos por um país ou um bloco de países. Ou que estão em situação de imigração considerada ilegal. Isso parece uma "fresta" conceitual, uma "frescura do politicamente correto". Contudo, esconde um abismo.
Às vezes, esquecemos que a escolha das palavras que usamos, consciente ou inconscientemente, não é aleatória. Diz muito sobre a forma como vemos o mundo e nos relacionamos com ele. Ou como fomos ensinados, formados ou doutrinados a legitimar a exploração como se fosse algo normal. Afinal, se o diabo está nos detalhes, o inferno são as entrelinhas da nossa fala.
Por exemplo, o que é "migrante"? O forasteiro que vem de fora roubar nossos empregos e destruir nossa cultura? Ou aquele que deixa sua casa tentando uma vida melhor ou mesmo sobreviver?
E o que é "refugiado"? O forasteiro que vem de fora roubar nossos empregos e destruir nossa cultura? Ou aquele que deixa sua casa tentando uma vida melhor ou mesmo sobreviver?
Na maior parte dos países, a diferença reside no fato de que o primeiro encorpa as favelas e bolsões de miséria das grandes cidades, cumprindo o papel da necessária mão de obra barata e informal que ajuda a manter o preço em baixa e os lucros em alta.
E o segundo vive em acampamentos rurais e alojamentos nas grandes cidades, cumprindo o papel da necessária mão de obra barata e informal que ajuda a manter o preço em baixa e os lucros em alta.
Corporações de países ricos ou em desenvolvimento superexploram territórios na periferia ou seus governos promovem conflitos armados em nome de recursos naturais ou interesses geopolíticos. Comunidades sofrem com isso e são obrigadas a deixar suas casas. Daí, vão bater as portas de países ricos ou em desenvolvimento, que não os recebem de braços abertos, apesar de serem cúmplices do sistema que os expulsou.
A busca por oportunidades que os migrantes e refugiados fazem em outras terras têm a ver com as oportunidades a eles negadas em seus locais de origem, não raras vezes por conta de uma histórica relação de exploração. Quantos casos vocês não viram na imprensa de multinacionais que expulsaram comunidades na África, Ásia e América do Sul, com a ajuda do governo local, para a utilização do território, levando a um êxodo que foi bater nas portas do próprio país de origem da empresa? Ou seja, levam chumbo em sua terra natal e na fronteira do país de destino.
Em todo o mundo, culpamos os migrantes de roubar empregos, trazer violência, sobrecarregar os serviços públicos porque é mais fácil jogar a responsabilidade em quem não tem voz (apesar de darem braços para gerarem riqueza para o lugar em que vivem) do que criar mecanismos para trazê-los para o lado de dentro do muro que os separa da dignidade.
A mobilidade deveria ser livre em todo o planeta. Afinal, se o capital não vê fronteiras, os trabalhadores também deveriam não serem barrados nelas. Ou morrer afogados ou à bala enquanto tentam ultrapassa-las. Adoraria que o Brasil desse um exemplo aos países do Norte, derrubando os muros que criam cidadãos de primeira e segunda classe, possibilitando o livre trânsito de trabalhadores sem condicionantes.
E, na verdade, qualquer pessoa que estuda migração sabe que esse fluxo de gente tem sido fundamental para a economia do centro rico. Países ricos, como os Estados Unidos, apesar de venderem o discurso de que querem barrar a imigração não-autorizada, sabem que dependem dela para ajudar a regular seu custo da mão de obra. É cômodo deixar uma massa de pessoas ao largo dos direitos, mas com muitos deveres.
Mas o que são favelas senão campos de refugiados econômicos?
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.