Taxação de heranças: porque uns nascem mais iguais que os outros
Leonardo Sakamoto
18/09/2015 19h39
Estou recuperando essa história por conta do momento em que vivemos. Após participar de um debate, fui abordado por uma mulher muito simpática que tentou me convencer a abandonar o "libelo comunista" da taxação de grandes heranças. Explicou que poderia me recomendar boas leituras para entender como esse tipo de medida afundou Cuba.
Sim, eu sei (suspiro). Mas você quer que eu faça o que nessas horas?
Quando contei que um outro país notoriamente "comunista", os Estados Unidos (estou com medo ultimamente de usar ironias na internet, mas vá lá…), mordia até 40% da herança, ela ficou indignada. Comigo, não com o Tio Sam. Afinal, os Estados Unidos não podem ser comparados com o Brasil. Bem, não mesmo. Lá o topo do imposto de herança bate umas dez vezes da média cobrada aqui.
Para quem não sabe, uma das razões que leva aos bilionários norte-americanos a criarem fundações é que essa doação conta com isenção tributária.
É justo que todos que suaram a camisa e conseguiram guardar algum queiram deixar uma vida mais confortável para seus filhos e netos. Contudo, a partir de uma determinada quantidade de riqueza, o que seria apenas garantir conforto transforma-se em transmissão hereditária da desigualdade social e de suas consequências.
Quem tem muito deveria, ao passar desta para a melhor, entregar parte do possuía para proporcionar oportunidades a quem tem menos. Atenção: não estou dizendo para entregar dinheiro vivo a quem não tem nada, caros leitores que não gostam de ler. Estou falando em usar os recursos para a execução de políticas públicas de educação, cultura, lazer, moradia, alimentação, enfim, vocês entenderam, direitos básicos. Afinal de contas, como é possível que, por lei, todos nasçam iguais em direitos se alguns vêm ao mundo sistematicamente "mais iguais" que outros?
Dessa forma, dentro de algumas gerações, conseguiríamos suavizar esse degrau brutal entre as diferentes castas que convivem por aqui.
Novamente, não estou sugerindo que todos usem uniforme caqui, morem em alojamentos coletivos e cozinhem ensopado de batata.
Mas, como ouvi um dia de um político consciente, o ultrajante não é alguém morar em um apartamento de 400 metros quadrados enquanto outro vive em um de 40. O que desconcerta é alguém desfrutar de um apê de 4 mil metros quadrados enquanto outro apanha da polícia para manter seu barraco em uma ocupação de terreno, seja em Itaquera, Grajaú, Osasco, Pinheirinho, Eldorados dos Carajás, onde for.
Alguns vão dizer que estou louco, que isso vai contra a ideia de propriedade privada, pilar sobre o qual nossa civilização está construída (Zzzzzzzz…) E que, sem a possibilidade de herança, tudo vai desmoronar, ninguém vai querer investir no desenvolvimento do país, plantaremos juta para roupas costuradas com espinho de peixe e faremos chá de capeba ou pariparoba para curar todas as doenças. Nós vamos viver em cavernas! NÓS VAMOS VIVER EM CAVERNAS!
A força de um futuro imposto sobre heranças, que morda progressivamente, na proporção do tamanho da fortuna, não reside apenas nos recursos que ele é capaz de arrecadar, mas no simbolismo de um Estado que assume o papel de corrigir distorções históricas e de tratar desiguais de forma desigual.
Ele tem o mesmo DNA de projetos como a redução da jornada de trabalho sem redução de salário, aumento da licença maternidade, taxação de grandes fortunas, correção dos índices de produtividade da terra, entre outros, que são tratados por muitos como o tabu de transar com a própria mãe.
Por isso a moça que me abordou pode dormir sossegada. Não estamos na iminência de mudanças que tornem o país estruturalmente mais justo, muito menos em uma reforma tributária socialmente justa. O momento agora é de ajuste e de grandes sacrifícios – para quem já não tem muita coisa, claro.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.