Estou sendo processado por divulgar fiscalização de trabalho escravo
Leonardo Sakamoto
07/10/2015 11h12
A Pinuscam – Indústria e Comércio de Madeira Ltda está movendo um processo criminal por difamação contra este jornalista por ter disponibilizado, neste blog, um link para uma lista com o nome de empresas que foram alvo de operações de resgate de trabalhadores em condições análogas às de escravo pelo governo federal. Uma informação de natureza pública, fornecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, via Lei de Acesso à Informação, que não veio acompanhada de comentários ou juízos de valor sobre a empresa.
A ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho resultou no resgate de 15 trabalhadores de condições análogas às de escravo, em Tunas do Paraná (PR), em 2012. A denúncia está tramitando na Vara do Juizado Especial Criminal do Foro Central Criminal de São Paulo.
Solicitei, com base na Lei de Acesso à Informação, que o Ministério do Trabalho e Emprego fornecesse os dados dos empregadores autuados em decorrência de caracterização de trabalho análogo ao de escravo e que tiveram decisão administrativa final entre dezembro de 2012 e dezembro de 2014. O extrato foi recebido em março e divulgado no blog.
Qual a razão desse pedido? Em meio ao plantão do recesso de final de ano, o ministro Ricardo Lewandowski garantiu uma liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) suspendendo a "lista suja" do trabalho escravo (cadastro de empregadores flagrados com esse tipo de mão de obra). A entidade questionou a constitucionalidade do cadastro, afirmando, entre outros argumentos, que ele deveria ser organizado por uma lei específica e não uma portaria interministerial.
Os nomes permaneciam na "lista suja" por, pelo menos, dois anos, período durante o qual o empregador deveria fazer as correções necessárias para que o problema não voltasse a acontecer e quitasse as pendências com o poder público. O cadastro é tido como referência de política pelas Nações Unidas.
Considerando que a "lista suja" nada mais era do que uma relação dos casos em que o poder público caracterizou trabalho análogo ao de escravo e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias; e que a sociedade tem o direito de conhecer os atos do poder público, solicitei, em conjunto com a Repórter Brasil, com base nos artigos 10, 11 e 12 da Lei de Acesso à Informação (12.527/2011) – que obriga o governo a fornecer informações públicas – e no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 uma relação que, na prática, teria um conteúdo o mais próximo e atualizado o possível do que seria a "lista suja".
Não seria possível pedir o conteúdo exato porque a decisão do ministro Lewandowski, atendendo à Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Abrainc (ADI 5209), exigiu a suspensão da eficácia das portarias que criaram e mantêm a lista. Mas a decisão não apagou os registros de resgates do Ministério do Trabalho e Emprego.
Primeiro cível, agora criminal – A Pinuscam já havia ingressado na esfera cível contra mim e a Repórter Brasil, por conta de divulgação de outra lista com resgates de trabalhadores, em que seu nome aparecia.
A ação foi julgada improcedente pelo juiz Miguel Ferrari Júnior, titular da 43a Vara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que indeferiu a censura, em novembro de 2013.
"O acolhimento do pedido formulado pela autora implicaria inexorável cerceamento de direito fundamental à liberdade de informação jornalística", afirmou Ferrari Júnior em sua sentença. De acordo com o juiz apenas foi prestada "informação verdadeira", ou seja, que a autora da ação foi fiscalizada pelos órgãos federais responsáveis pela erradicação do trabalho escravo.
Na época, essa tentativa de censura repercutiu junto a jornalistas e entidades ligadas à defesa da liberdade de expressão, sendo divulgada por veículos de comunicação de todo o país quando a Justiça chegou a dar uma liminar ordenando a retirada da informação – liminar que foi revogada logo depois.
A empresa afirma que firmou um acordo com o Ministério Público do Trabalho e, portanto, não poderia ser citada. De acordo com Luercy Lopes, procurador do Ministério Público do Trabalho no Paraná, responsável pelo caso da madeireira: "Um acordo não significa, em hipótese alguma, reconhecimento de inexistência de prática de trabalho análogo ao de escravo. É só uma forma de solução do conflito judicializado".
Direito à informação – A sociedade brasileira depende de informações oficiais e seguras sobre as atividades do Ministério do Trabalho e do Emprego na fiscalização e combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil.
Informação livre é fundamental para que as empresas e outras instituições desenvolvam suas políticas de gerenciamento de riscos e de responsabilidade social corporativa.
Vale ressaltar que a reportagem não desrespeitou a decisão judicial do STF porque não solicitou a "lista suja" prevista nas portarias e sim informações públicas com as características descritas acima, que são balizas bem próximas às do cadastro original.
Retomo o que disse na época da ação na esfera cível. Estamos vivendo um momento de preocupante ataque à liberdade de expressão por empresas, governos e parlamentares que tentam inviabilizar a divulgação de informações de interesse público com a imposição de processos judiciais.
Alguns pedem censura. Outros, indenizações milionárias. Por fragilidade nos argumentos e pela falta de provas, boa parte desses processos são arquivados ou derrotados em algum momento. Contudo, esse redemunho gera uma canseira. Quantas vezes já ouvi colegas afirmarem que evitam determinadas pautas pelo transtorno que elas causam? Sem contar que, muitas vezes, mesmo estando certo, você perde.
E isso atinge a todos, direita, esquerda, centro, blogs independentes, mídia tradicional. Eu, você.
É direito de quem se sentiu lesado injustamente reclamar. Mas existe um mundo de distância entre isso e ações que claramente contam com o objetivo de demover o jornalista ou seu veículo de comunicação de trazerem à tona informações que o poder político ou econômico querem manter em segredo.
O juiz Miguel Ferrari Júnior, que decidiu contra a empresa no caso cível, citou o jurista José Afonso da Silva em sua sentença ao tratar do respeito à liberdade de informação jornalística. Nesse momento, vale a pena ser lido. Não apenas por nós que, não raro, nos esquecemos disso, soterrados pelo nosso fordismo do dia a dia. Mas por políticos e empresários que não gostam de viver em democracia: "É nesta que se centra a liberdade de informação, que assume características modernas, superadoras da velha liberdade de imprensa. Nela se concentra a liberdade de informar e é nela ou através dela que se realiza o direito coletivo à informação, isto é, a liberdade de ser informado. Por isso é que a ordem jurídica lhe confere um regime específico, que lhe garanta a atuação e lhe coíba os abusos".
Tanto naquela época quanto agora estou sendo representado nesses casos por Eloisa Machado, André Ferreira e o Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (Cadhu), grupo de advogados que têm realizado um trabalho fundamental na defesa da dignidade no Brasil.
Solicitei ao juiz que a ação criminal, que corria sob sigilo de Justiça, fosse tornada pública. Ela pode ser encontrado sob o registro 0001637-12.2015.8.26.0470.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.