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A internet odeia as mulheres e ninguém vê problema nisso

Leonardo Sakamoto

02/11/2015 00h10

Homens que possuem espaço na mídia foram instigados a ficarem como espectadores nesta semana, ao invés de escreverem e publicarem textos sobre os direitos das mulheres e questões de gênero. Ou seja, a cederem seu espaço para que elas falassem por si. Portanto, nos próximos sete dias, a partir desta segunda (2), mulheres de diferentes origens, histórias e regiões publicarão neste blog sobre o tema dentro da iniciativa #AgoraÉQueSãoElas. Enquanto isso, fico como leitor ao lado de vocês.

Juliana de Faria e Luíse Bello, do Think Olga, responsável pelas campanhas #primeiroassedio e Chega de Fiu Fiu, estreiam a série com o texto exclusivo que segue abaixo. Amanhã, será a vez da cantora, compositora, atriz e ativista Karina Buhr.

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A internet odeia as mulheres e ninguém vê problema nisso, por Juliana de Faria, fundadora, e Luíse Bello, gerente de conteúdo e comunidades, do Think Olga

O sucesso das edições do Masterchef com adultos deve-se em boa parte à sua forte ligação com as redes sociais, especialmente o Twitter. Talvez o programa seja o primeiro a ter conseguido no Brasil, com algum sucesso, fazer com que seus usuários assistam a tevê com o celular na mão sem que o segundo roube a atenção do primeiro.

A cada episódio, instantaneamente nasciam memes voláteis que eram parte de uma conversa dominada por internautas, sem qualquer interferência da emissora, pelo contrário – a Band abraçou a vocação do Masterchef para as mídias sociais desde o início. Os usuários do Twitter são tão cruciais para o programa que o nome do campeão foi anunciado primeiro na rede social e depois na tevê.

Diferente de outras audiências, a do Masterchef sabe que tem sua voz ouvida e, naturalmente, na estreia da edição Kids, lá estavam eles prontos para tecer comentários, fabricar imagens e lançar tendências em cima dos participantes. Mas, entre tudo o que podia ser dito durante a estreia, o que se ouviu mais alto de uma audiência tão disposta a falar foi a voz da pedofilia. Não existe outro nome para quem, sem qualquer remorso, faz notória sua atração por uma criança de 12 anos.

Foi o caso dos inúmeros tweets que tiveram como alvo uma menina dessa idade que ama cozinhar e, com o consentimento dos pais e cheia de orgulho, foi selecionada para participar do reality show. Ainda que existam muitas crianças na televisão brasileira, nunca antes tivemos a oportunidade de saber exatamente o que os espectadores pensam delas.

O que foi emblemático no caso do Masterchef é que, pela natureza de sua relação com os espectadores, foi possível observar, sem filtros, a podridão em que está mergulhada a mentalidade de muitos brasileiros. E não estamos falando de pessoas retrógradas, de gerações antigas e desatualizadas, mas do público do Twitter: jovens, em sua maioria abaixo dos 30 anos, e com educação universitária, segundo dados demográficos publicados em agosto pelo Pew Reseach Center.

E aqui temos dois pontos importantes sobre os quais precisamos conversar.

A pedofilia banalizada é mais próxima do que imaginamos

Após o caso MasterChef Jr, demos início, via Think Olga, à campanha #primeiroassedio, um movimento catártico e gigantesco de mulheres que, por meio de tweets, compartilhavam histórias dos primeiros assédios vividos. Elas nos ajudaram a mostrar que o que aconteceu com a chef jr de 12 anos não era um ponto fora da curva. Pelo contrário, é a realidade cruel, mas muito verdadeira de milhares de meninas brasileiras.

Em cinco dias de campanha, a hashtag havia sido replicada 82 mil vezes, em tweets e retweets. Um grupo de tweets (3.111 postagens) foram analisados pela Think Olga e descobrimos que a idade média do #primeiroassedio entre tais denúncias era 9,7 anos.

E este é a nuvem de palavras criada a partir do mesmo grupo de tweets, em que "pai", "casa" e "escola" aparecem de forma gritante.

Em uma análise mais profunda da campanha de hashtag, o jornalista Rafael Kenski relembra que, no ano passado, o site de pornografia PornHub divulgou uma pesquisa sobre as palavras mais buscadas em cada país. No Brasil, fora o nome do país, o termo mais buscado é "novinha". A notícia foi tratada sem a relevância que merece e o problema que expõe: o desejo sexual por crianças e adolescentes é real e indiscriminado, já que vem mascarado de brincadeira. Só que na vida real essa "piada" se traduz em violência sexual.

Além disso, é alto o número de mulheres que procuraram o Think Olga por email e outros meios particulares para contar suas histórias e perguntar como e se poderiam compartilhá-las anonimamente. Ainda que o assunto estivesse em voga e sendo apoiado por milhares de pessoas na internet, elas ainda têm medo de compartilhar seus traumas publicamente – enquanto partilham da mesma necessidade de tirar do peito e da memória as lembranças de uma dor a que ninguém jamais deu ouvidos. Entre as razões, estão camadas e mais camadas de culpa, dor, vergonha e silenciamento e, claro, a proximidade com que ainda vivem de seus agressores. Estes, reforçamos, seguem suas vidas com a certeza da impunidade.

Não é nosso papel julgar o medo das mulheres de expor suas histórias. É sim nossa responsabilidade questionar os mecanismos que permitem que vítimas evitem revelar suas histórias publicamente e pedófilos sintam-se livres para assediar crianças com seus próprios perfis nas redes sociais.

A internet odeia as mulheres – e ninguém vê problema nisso

Existe uma misoginia on-line que traz consequências duras para a vida offline das mulheres, que o caso do MasterChef Jr escancarou. Em uma entrevista para o Think Olga, Marta Trzcinska, advogada norueguesa especialista em direitos das mulheres e crimes na internet, disse sobre as práticas de assédio no ambiente virtual: "É um problema de saúde pública, é um problema para a democracia e deve ser tratado seriamente como um crime".

Violência e assédio on-line são costumeiramente vistos como "brincadeira" e "piada". Ainda mais quando são voltados para o público feminino e, por vezes, entendidos como "elogio" (sabe aquele comentário clássico do anônimo que diz querer te comer?) ou problema de menor importância. Mas entenda: não são. Esses abusos afastam as mulheres de suas atividades — por medo, por vergonha — e as isolam do seu direito de livre expressão.

E apesar da internet ser sim um espaço belicoso para todos que a navegam, há uma enorme diferença na forma com que homens e mulheres são atingidos por essa questão problemática. Em 2006, pesquisadores da Universidade de Maryland criaram vários perfis falsos em salas de bate-papo. Usuários com nomes femininos receberam, em média, 100 mensagens violentas e de cunho sexual por dia. Usuários com nomes masculinos, apenas 3,7.

De acordo com a ONU, uma em cada cinco mulheres foi vítima de estupro ou de tentativa de estupro ao longo da sua vida. Uma ameaça, mesmo que anônima, de uma violência sexual dá medo, pavor. Afinal, para nós mulheres, essa é uma bomba que pode explodir a qualquer momento.

O custo para a sociedade é imenso: a brutalidade on-line mina a dignidade das mulheres, deslegitima suas vozes como cidadãs e as reduzem a corpos sexualizados e objetificados. Isso nos afasta de discussões on-line e suprime nossas opiniões e contribuições para a sociedade – seja em um blog de conteúdo feminista, seja em um vlog de moda. E apesar da gravidade do problema, ele ainda não é levado a sério pelas empresas de redes socais, a polícia e o poder público.

Enquanto as autoridades não tomam uma atitude, nós fazemos o que conseguimos para sobreviver no mundo on-line. Temos um F.A.Q. que ensina a denunciar tais crimes. 

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto