Sou ateia, mas rezei: Uma história de violência sexual e direito ao aborto
Leonardo Sakamoto
06/11/2015 10h14
Homens que possuem espaço na mídia foram instigados a ficarem como espectadores nesta semana, ao invés de escreverem e publicarem textos sobre os direitos das mulheres e questões de gênero. Ou seja, promoverem uma ocupação de seu espaço para que elas falassem por si. Portanto, de segunda a domingo (8), mulheres de diferentes origens, histórias e regiões estão publicando, neste blog, sobre o tema dentro da iniciativa #AgoraÉQueSãoElas.
Hoje o blog é de Camila Agustini, roteirista e advogada especialista em direitos humanos.
Os outros já publicados nesta série são: Segunda (2) – Juliana de Faria e Luíse Bello, do Think Olga, responsável pela campanha #primeiroassedio; Terça (3) – Karina Buhr, cantora, compositora, atriz e ativista; Quarta (4) – Djamila Ribeiro, filósofa e feminista e Laura Capriglione, jornalista e escritora; Quinta (5) – Maíra Kubik Mano, jornalista, doutora em Ciências Sociais e professora do bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade da UFBA.
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Sou ateia, mas rezei: Uma história de violência sexual e direito ao aborto, por Camila Agustini
Eu não acredito em nenhum Deus. Não me sinto conectada a nenhuma religião. Mas, como tantas outras pessoas que não creem, precisei recorrer a supostas forças divinas em dois momentos extremos.
Nas duas vezes que eu mais tive medo na vida, gritar não adiantava e, confesso, acabei rezando.
A primeira vez foi, num final de tarde, nos arredores do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, em 2002. Eu estava fazendo algo que fazia todos os dias: ir do trabalho ao ponto de ônibus que me levaria ao Largo São Francisco.
Foi tudo muito rápido. Um homem me abordou e me conduziu a uma área isolada embaixo do Cebolinha.
Eu não tinha dinheiro e fui espancada.
A minha cabeça foi golpeada várias vezes contra o chão, com violência, e eu não rezei.
Eu perdi o ar, e a voz, depois de ser esganada algumas vezes e tampouco rezei.
Mas, quando aquele homem abaixou a calça e aproximou o pênis dele da minha boca, eu rezei, implorando a algo que fosse maior do que aquela situação terrível, que aquele homem não fizesse nada além daquilo.
Eu já estava sem voz, mas depois disso, como um último suspiro, consegui gritar que eu tinha leucemia. A mentira assustou o homem que temia uma doença que ele não conhecia.
Consegui fugir.
O meu caso ficou conhecido na Faculdade de Direito da USP e logo fui procurada por cinco outras estudantes que tinham histórias muito piores que a minha e nunca tinham se atrevido a revelá-las. Como a maioria das vítimas, não buscaram médicos, não buscaram policiais, envergonhadas por algo que não puderam evitar.
Anos mais tarde, uma querida amiga apareceu chorando à minha porta. Ela estava grávida e havia decidido fazer um aborto.
Estava convicta. Nada a faria mudar de ideia.
Não era nem a primeira, nem a décima vez que uma amiga decidia fazer um aborto. Mas, era a primeira vez que eu era escolhida como acompanhante.
Nós não iríamos a uma clínica privada. Iríamos a um hospital público. Estávamos em Cuba, onde o aborto é felizmente legalizado.
Fiquei com a minha amiga em uma fila de mulheres que aguardavam debaixo de um sol inclemente. Todas pareciam tranquilas, menos as duas estrangeiras. Eu sabia que estávamos seguras. Cuba tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Mas, mesmo assim, quando vi minha amiga entrar na sala de cirurgia, tive um medo incontrolável.
Crescemos sabendo que milhares de mulheres morrem ao tentar interromper sua gravidez no Brasil. Crescemos aprendendo a desconfiar de Cuba.
E naquela hora eu tive medo que a minha amiga não saísse viva dali.
Eu tive tanto medo que sentei no chão e rezei mais uma vez. Rezei sem parar pensando nas clínicas clandestinas do Brasil. Nos números aterradores que revelam que o aborto clandestino é uma das principais causas de mortes de mulheres no meu país.
Rezei e só parei quando minha amiga saiu viva, inteira, daquela sala.
Infelizmente estas duas histórias não são exceção. Violência sexual e aborto marcam a história de milhares de mulheres no Brasil e no mundo. Toda mulher conhece alguma mulher que abortou e/ou que foi vítima de violência sexual. Toda mulher tem medo de ter que passar por alguma destas situações um dia.
Agora, o Congresso Nacional, composto em sua absoluta maioria por homens que não têm medo nem de uma coisa, nem de outra, debate um projeto de lei para definir o que a mulher pode ou não fazer nestes dois casos. O PL 5.069/13 propõe como política de Estado a legitimação da violência permanente contra o corpo da mulher.
Esses deputados propõem que depois de violentadas, devassadas, as mulheres sejam obrigadas a ir a uma delegacia antes de ver um médico. Que a decisão sobre seus corpos não seja autônoma, que seja um caso de polícia e não de saúde pública.
E não raro invocam a Deus para legitimar algo que jamais aceitariam se os corpos em questão fossem os seus.
Não, não aceitaremos.
E espero não precisar rezar uma vez mais para impedir que o desejo destes senhores sobre o meu corpo, sobre o corpo de todas as mulheres deste país, seja realizado. Não passarão.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.