Massacre em Paris: O milagre da paz diante do convite à barbárie
Leonardo Sakamoto
14/11/2015 11h45
Apenas em momentos de choque, como nas horas seguintes à ignomínia do massacre terrorista de Paris, ocorrido na noite desta sexta (13), quando mais de 120 pessoas foram mortas pelos açougueiros do Estado Islâmico, nos damos conta da fragilidade da nossa ideia de civilização. Conversando com um amigo nesta semana, discutíamos que, surpreendentemente, o milagre não era a humanidade ainda produzir momentos de horror, mas o contrário: conseguir viver períodos em que não reine a mais completa barbárie. Pois, considerando a nossa história, a paz é a exceção, não a regra.
O que leva uma pessoa a comprar uma arma ou fabricar uma bomba e entrar em uma casa noturna, uma igreja, um cinema ou mesmo a céu aberto e – em sã consciência de seus atos – atacar outras pessoas que ela não conhece? A pergunta é retórica, claro, porque ela seria seguida naturalmente por milhares de páginas de explicações sobre fundamentalismo religioso, propaganda do ódio, imposições geopolíticas, processos econômicos, manipulação de massa, enfim.
Vocês mesmos devem estar pensando agora que a incapacidade de sentir empatia por um semelhante, comum nos psicopatas, também acometem pessoas consideradas equilibradas. Mas que, diante de algumas circunstâncias, saem da internet e espancam e matam com as próprias mãos porque veem no "diferente" um risco à sua própria existência.
Mas no final de todas essas explicações, chegaremos à mesma conclusão: de que nossa educação social, nossos conjuntos de regras e leis, nosso sistema de repressão e nossa violência estatal têm conseguido – independente da análise sobre se isso tem sido justo (porque não tem) e de quão incompetentemente esse processo tem sido conduzido – nos manter como grupo social.
Não tenho nenhuma pretensão quanto à razão da nossa existência. Não acredito que habitamos a terceira rocha que circunda um sistema solar periférico por conta de algum capricho sagrado, sentido traçado ou destino planejado, mas por puro acaso. E, para fugir do frio e do vazio dessa constatação, passamos milênios construindo deuses à nossa imagem e semelhança. E matamos em nome deles. Ou, melhor dizendo, em nome de nós mesmos, usando-os como justificativa.
É exatamente a improbabilidade da vida que deveria ser a razão pela qual ela deveria ser protegida a todo o custo. Cálculos estatísticos mostrando a grande possibilidade de sua ocorrência fora do planeta são apenas isso, puro desejo aplicado à matemática.
A história da humanidade é uma história de luta por valores, pelo processo de dar significado à vida e ter hegemonia e controle sobre esse significado. Particularmente, ainda acredito que promover um diálogo multicultural e respeitoso entre as diferentes civilizações e os significados que cada uma dela dá à ideia de dignidade, construindo, de forma lenta e gradual, um sistema internacional de direitos humanos, ainda é nossa melhor saída concreta. Pois a antítese a isso – a guerra – é uma saída sem fim.
A forma mais sustentável de um povo ou uma comunidade libertarem-se do jugo da opressão religiosa ou da tirania social e econômica a que estão submetidos é através da construção da consciência sobre si mesmos, seus direitos, o mundo que o cerca e a fragilidade de nossa própria existência. Nada que vem de cima para baixo ou de fora para dentro será capaz de produzir efeitos efetivos e duradouros nesse sentido. A solidariedade internacional não deve ditar como isso vai acontecer, mas possibilitar que grandes forças sociais, políticas e econômicas globais não inviabilizem esse processo de conquista autônoma de liberdades e direitos.
Pois a vida não tem sentido para além do sentido que damos a ela.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.