A promiscuidade obscena dos políticos donos de rádio e TV
Leonardo Sakamoto
23/11/2015 08h26
A Constituição Federal determina que senadores e deputados não podem manter contratos com concessionárias de serviço público, tais como rádios e TVs, entre outros. Usando uma concessão pública de mídia em causa própria, eles podem desequilibrar a democracia, favorecendo interesses pessoais, atacando adversários políticos, facilitando a sua própria eleição e a sua perpetuação no poder. Pedi para Pedro Ekman, conselheiro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação e produtor audiovisual independente, escrever um texto para este blog explicando uma ação movida pelo Ministério Público Federal em conjunto com organizações da sociedade civil para cassar as licenças de rádio e TV de 40 políticos donos de mídia no país:
A promiscuidade obscena dos políticos donos da mídia, por Pedro Ekman
O Ministério Público Federal paulista iniciou um processo que pode por fim ao relacionamento mais promíscuo e obsceno da curta história da democracia brasileira: o casamento da mídia com a política. Na última quinta (19), o MPF acionou na Justiça os três deputados federais radiodifusores do Estado de São Paulo: Antônio Bulhões (PRB), Beto Mansur (PRB) e Baleia Rossi (PMDB). Eles são os primeiros de uma lista de 40 parlamentares que incluem, entre outros, os senadores Aécio Neves (PSDB-MG), dono de uma retransmissora da rádio Jovem Pan, e Fernando Collor (PTB-AL) e Agripino Maia (DEM-RN), donos da Globo e da Record em seus estados.
O artigo 54 da Constituição Federal determina explicitamente que senadores e deputados não podem manter contratos com concessionárias de serviço público, tais como rádios e TVs, entre outros. Sim, pode não parecer, mas a radiodifusão é um serviço público.
Estaria no fim um relacionamento promíscuo pela forma como os interesses privados e a comunicação de massa se lambuzam na condução da agenda e do debate político. "Não tive mais espaço nos canais controlados pelos meus adversários políticos", confessa o ex-deputado Marçal Filho (PMDB-MS) no processo que o condenou por falsificar documentos que omitiam o fato dele ser dono de mídia em seu estado. Para a Ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber "há um risco óbvio na concentração de poder político com controle sobre meios de comunicação de massa".
Apesar de óbvio, o obsceno ilícito acontece em plena luz do dia e aos olhos e ouvidos de todos. Os nomes dos 40 parlamentares constam simultaneamente em documentos oficiais do Ministério das Comunicações e nos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. O resultado desta promiscuidade vai ao ar obscenamente todos os dias no rádio e na TV. Basta ligar os aparelhos para se constatar.
Mesmo beirando pornografia explícita, a questão sempre foi solenemente ignorada por todos os governos até então por motivos óbvios. O Ministério das Comunicações sempre optou pela miopia ensurdecida para que se mantenha o equilíbrio político de governabilidade e apoio eleitoral, tal como a não fiscalização das empresas de comunicação que poderiam revidar em seus noticiários.
A certeza da impunidade e a naturalização do ilícito como legítimo é tamanha, que, para se defender da acusação de serem políticos donos da mídia, alguns acabam confessando outras infrações como resposta para o problema. "A Concessão não é minha, eu tinha comprado e já vendi", "ela só existe no papel, nunca funcionou" ou ainda "já transferi a rádio para uma igreja há mais de dez anos". Uma verdadeira orgia em praça pública. Pela omissão histórica, além dos parlamentares, o Ministério das Comunicações também engrossa o banco dos réus na ação judicial.
A movimentação do MPF é resultado de um esforço conjunto com a sociedade civil para moralizar setor. Na manhã desta segunda (23), as organizações Andi – Comunicação e Direitos, Associação Juízes para Democracia, Artigo 19, Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social, Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, Levante Popular da Juventude, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor protocolaram uma representação pela cassação das licenças de rádio e TV dos 40 políticos donos da mídia.
A lista poderia ser bem maior, mas a opção foi pelo questionamento judicial apenas dos parlamentares que possuem documentos comprovando a incompatibilidade do cargo com a concessão do serviço público. Uma vez ganha essa batalha, o caminho está aberto para estender essa interpretação para governadores, prefeitos, outros parlamentares e de seus parentes próximos.
O Brasil tem um longa dívida com a sua democracia e vai demorar para conseguir pagar. Alguns passos já foram dados.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.