Jovem, ao completar 18 anos, fuja para ver o mundo
Leonardo Sakamoto
20/12/2015 12h19
Recebo, com certa frequência, pedidos de ajuda de estudantes do ensino médio que desejam ser jornalistas, mas se afundam em dúvidas sobre os rumos que devem tomar para tanto. A verdade é que mesmo aqueles entre nós que se dedicam em tempo integral em entender como as transformações tecnológicas e econômicas estão impactando a natureza da profissão são incapazes de traçar, com honestidade, para onde vamos. Tendo isso em vista, gostaria de trazer novamente uma resposta escrita que dei a uma estudante algum tempo atrás, atualizando com uma lista de livros e documentários para quem quer se perder nesse caminho errado do jornalismo.
Sakamoto, tudo bem?
Gosto muito do seu blog, apesar de nem sempre concordar com você. Adoro a área de direitos humanos e sempre quis fazer jornalismo para cobrir problemas sociais. Sei que é besta, mas mudar o mundo, sabe? Sei que há boas faculdades em São Paulo e meus pais têm como pagar o curso.
Mas estou em dúvida. Como você é professor de jornalismo, gostaria que me convencesse a fazer esse curso.
Abraços!
Cara, tudo bem?
Se não se importa, vou publicar no blog a resposta que te mandei, ok?
Hipoteticamente, vamos fazer de conta que exista uma faculdade de jornalismo que cobre R$ 2000,00 por mês dos alunos. É claro que nenhuma instituição em sã consciência extorquiria isso a menos que oferecesse aulas holográficas em 3D, free cupcakes nos intervalos e contasse com a presença de lêmures amestrados de Madagascar para carregar a mochila dos estudantes.
Mas façamos de conta que ela exista. Por mais profundos e interessantes que os debates possam ser nessa instituição, por mais amplo o conhecimento à disposição por lá, se você tem um terço desse dinheiro e ainda não precisa trabalhar para viver, arriscaria uma heresia para quem é professor de jornalismo: não entre na faculdade, vá viajar.
Compre um tablet, pode ser o mais vagabundo ou um usado, e baixe nele uma lista de livros que posso te indicar. Um terço serão de grandes reportagens – para inspirar. Um terço de livros sobre política, economia, cultura, sociedade – para alimentar. Um terço de livros de literatura – para viver.
Veja também:
Lista com 100 livros para inspirar o jornalismo.
Lista com 100 documentários para inspirar o jornalismo.
Então, sozinho ou com mais alguém, vá conhecer o Brasil que nunca te mostraram porque acharam "desnecessário" ou fora de pauta. Descubra o país para além do Leblon e dos Jardins, mas também de Santa Tereza e da Vila Madalena. Sente-se para conversar com pessoas tão diferentes de você quanto possível e ouça a história de vida delas como se ouvisse a sua própria. Trabalhe como voluntária em organizações sociais na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal, não para comprar créditos no céu, mas, simplesmente, para entender as coisas.
Por uma pequena fração dessa mensalidade, você vai conseguir viver sem luxo e com alguns apertos. É claro que terá que fazer um bico de trabalho aqui, outro ali, para completar o orçamento. Mas ganhar o pão com o próprio suor ajuda a se conceber como trabalhador – coisa que nós, jornalistas, esquecemos o tempo inteiro.
Jogue futebol em campos de várzea, nade em rios, dance loucamente em festas, de raves ao carimbó. Coma muito – por mim, é claro. Se você não tiver medo de entrar nas periferias das grandes cidades ou em pequenos povoados distantes de tudo, eles não terão medo de você. Faça amigos. Participe de protestos e manifestações por solidariedade. Ame alguém loucamente.
Daí atravesse a fronteira entre Corumbá e Puerto Suárez e adentre sua América do Sul com o peito e a mente abertos, deixando o olhar arrogante para trás. Perceba o quão somos parecidos em nossas lutas, frustrações e sonhos e se pergunte o porquê de todos os seus amigos terem ido para a Disney e não para a Bolívia ou a Colômbia. Passe frio em Ushuaia e calor em Cartagena, suba montanhas no Equador, desça ao mar na Venezuela. Vá dormir acampada com quem não tem nada e veja se eles são os baderneiros dos quais sempre ouviu falar.
Peça para visitar redações de jornais, discuta à vontade em coletivos culturais. Faça um diário de viagem e escreva tudo o que se passou por fora e por dentro. E mande notícias para seus amigos e família, com textos, fotos, vídeos, gravando, trocando impressões, usando redes sociais.
Dois anos depois, na volta, venha conversar.
Tenho plena convicção de que a atividade jornalística não deve ser monopólio de quem é diplomado, podendo ser realizada por quem não passou por uma cadeira de faculdade. Um professor de jornalismo falando isso pode ser um pouco chocante, eu sei.
Conheci, andando por esse Brasil, muita gente que nunca viu um diploma, mas que é mais jornalista com um microfone de uma rádio comunitária na mão, fazendo um pequeno jornal mural ou com um pequeno blog de notícias ou, mais recentemente, com celulares no meio de conflitos, transmitindo imagens, do que alguns que passaram quatro anos nos bancos de universidades e hoje refestelam-se atrás de cartões de visita, bloquinhos timbrados, um nome conhecido – seja de redação grande ou pequena, mainstream ou alternativa.
Refletir sobre sua profissão, dentro de uma ética específica, sabendo o que significa o papel de intermediar a informação na sociedade e ter a consciência dos direitos e deveres atrelados à liberdade de expressão são desafios que não serão aprendidos necessariamente na academia. Ou mesmo em uma redação. Mas na vivência diária, conhecendo o outro, o diferente.
Isso se chama bagagem de vida. E, por mais que seja crucial para um bom jornalismo, é o que mais falta na profissão. Seja por falta de oportunidade, seja por falta de vontade.
Não me entenda mal, por favor. Não estou desprezando a escola de jornalismo como local de estudo, pesquisa e reflexão da profissão e de seu ethos. Técnicas podem ser passadas no dia-a-dia de uma redação e em cursos de treinamento de jornalistas das empresas de comunicação. É a parte fácil da formação. Mas há outras coisas que o mercado não entende ou permite (pois passa pela subversão de seus próprios princípios) que precisam de um local para florescer. E a academia poderia suprir esse papel.
Fazer jornalismo não é só passar adiante informação. É estar preparado para analisá-la e entendê-la, coletando discursos diferentes e contraditórios e organizando-os de forma a fazer sentido. Sem se deixar levar pela aparência ou sendo usado por terceiros. E isso se aprende, principalmente, com outros exemplos feitos por quem veio antes de nós, seus erros e acertos.
O problema é que falta muito para que tenhamos escolas de jornalismo que sejam um espaço real de debate e contestação e não de reprodução de modelos de formas e narrativas que já não cabem nesse admirável mundo novo. Escolas que entendam como pode ser horrível estudar para ser tijolo de muro ou engrenagem de máquina. A educação deveria libertar mas, nesse caso, aprisiona. Por outro lado, a consciência de si e do outro como iguais é arrebatadora. E isso, como eu disse, não se aprende na carteira de uma faculdade.
Se você tem estrutura para tanto, fuja do hospital para se tratar. Adorei ter feito faculdade. E faria novamente. Isso ampliou muito minha visão de mundo e me deu amigos para uma vida. Mas sei que aprendi mais nos corredores, inclusive com os mestres, do que nas salas de aula. Considere, portanto, que o mundo é um grande corredor de ensino superior.
Ter um diploma em jornalismo não significa exercer a profissão com mais ou menos ética – considerando que a maioria de nós, que fazemos grandes besteiras, frequentamos faculdades. Ao mesmo tempo, o exercício do jornalismo pode causar danos mais amplos, profundos e duradouros do que a queda de uma ponte ou um erro médico. A incompetência, preguiça ou má fé de nós, jornalistas, pode acabar com vidas de um dia para noite, ajudar a derrubar governos, detonar guerras, justificar genocídios. E a capivara de crimes cometidos por nós, jornalistas, seria melhor conhecida se, até pouco tempo atrás, não fossemos os próprios responsáveis por fazer a informação chegar à mesma sociedade que nos condenaria. Afinal, éramos os iluminados que fizeram a ponte entre a notícia e você. Até pouco tempo atrás.
Há uma série de perguntas que não estão atreladas a um diploma ou um emprego em uma grande empresa de comunicação: De que forma nós podemos garantir que a sociedade receba a melhor informação possível para tomar suas decisões? Como garantir que sejamos responsabilizados por danos causados a terceiros erroneamente? Como é possível nos perceber como trabalhadores e não como patrões? Como fazer com que nós, jornalistas, possamos entender que não somos observadores independentes da realidade? Como contar a história deste novo tempo?
Se depois que ver o mundo ainda quiser fazer faculdade de jornalismo, para organizar as ideias e ir além, serei feliz em discutir opções contigo. Mas, até lá, talvez você irá preferir outro caminho. Até porque estará muito à frente de tantas pessoas que ficam tão preocupadas em explicar o céu e a terra de olho no retrovisor do seu carro importado que não percebem que estão prestes a serem ultrapassadas por quem vem por trás, de bicicleta.
Espero não ter te convencido de nada.
Grande abraço e boa sorte!
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.