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Sua roupa pode ter vindo do Sertão. Conheça quem suou (muito) por ela

Leonardo Sakamoto

24/12/2015 08h37

São Paulo não é o único polo de produção de roupas no país e imigrantes bolivianos e paraguaios tampouco são os únicos que sofrem com situação precária de parte do setor de confecções, ao contrário do que as constantes e numerosas denúncias de superexploração do trabalho na capital paulista fazem crer.  Grandes empresas, como a Hering e Riachuelo, terceirizam parte de sua produção para região castigada pela seca no Nordeste, onde empregados trabalham em oficinas que pagam menos do que nas capitais, fazendo longas jornadas. Mesmo assim, o medo de ver empresas migrarem suas encomendas para outras regiões e até fora do país inibe denúncias de trabalho precário, num "contínuo ruim com eles, pior sem". A reportagem a seguir é de André Campos, que visitou a região do Seridó potiguar para contar essa história. A íntegra está no site da Repórter Brasil.

Trabalhadora produz peças em oficina terceirizada no interior do Rio Grande do Norte (Foto: Lilo Clareto)

Hering e Riachuelo tercerizam parte da produção para oficinas do Sertão, por André Campos

Desde 2013, a região do Seridó, no semiárido do Rio Grande do Norte, vive um boom de pequenas oficinas de costura terceirizadas – as chamadas "facções". Elas produzem peças antes costuradas por mão de obra contratada diretamente pela Guararapes Confecções, do grupo Riachuelo. A Hering é outra grande marca presente na região. Há cerca de dez anos, em menor escala, a companhia já havia iniciado a terceirização da costura para o Seridó.

Com a chegada em massa das oficinas, surgiram também episódios de graves violações trabalhistas como jornadas excessivas, trabalho sem carteira assinada e pagamentos abaixo do salário mínimo. Problemas sérios quando se considera o tamanho das marcas que são responsáveis pela produção. Mas que podem parecer pequenos aos olhos da população local, que luta contra a pobreza e a seca.

O semiárido é o novo destino de uma velha prática, já que, há anos, as grandes marcas da moda terceirizam sua produção para pequenas oficinas em outras regiões do país. Em São Paulo, por exemplo, as oficinas de bolivianos foram palco de diversos flagrantes de trabalho escravo. Algumas delas produziam roupas para grandes varejistas como Marisa, Pernambucanas, Renner e Zara.

Do mesmo modo como terceirizam sua produção para imigrantes nos grandes centros, o novo boom de oficinas se expande na região de onde costumavam sair os migrantes brasileiros. Muda a localização e o sotaque, mas as roupas continuam sendo costuradas por uma população vulnerável, mais propícia a aceitar condições precárias de trabalho – contando, para isso, com o apoio de políticas estaduais.

A Repórter Brasil visitou a região e ouviu relatos dos trabalhadores sobre as condições em que costuram as roupas. Os nomes foram trocados para proteger os funcionários. Procuradas, Hering e Riachuelo afirmaram que auditam as oficinas e que exigem delas o cumprimento das leis trabalhistas, adotando medidas corretivas quando necessário. Ressaltaram também que, somados, seus fornecedores contribuem para o desenvolvimento do interior do estado ao gerar mais de quatro mil empregos.

Projeto de governo

A criação de oficinas terceirizadas no semiárido potiguar conta com a benção e o incentivo do governo estadual. Através do programa "Pró Sertão", ele capacita a mão de obra sertaneja para operar máquinas de costura e facilita o financiamento a microempresários interessados em montarem suas oficinas. "Sei da importância do emprego para as pessoas que vivem no interior. As pessoas terem o direito de nascer, estudar e trabalhar, sem precisar migrar para grandes centros", declarou em junho o governador Robinson Faria (PSD), durante a apresentação das metas atualizadas do programa. Até 2018, a intenção é criar 210 oficinas e gerar mais de quatro mil empregos.

Além disso, o "Pró Sertão" também quer atrair outras marcas de roupa para o interior do estado. A RM Nor – confecção que produz peças da C&A e Renner, entre outras – já conta com algumas oficinas terceirizadas na região. A loja de artigos esportivos Decatlhon é outra que teria demonstrado interesse em aportar no Rio Grande do Norte.

Flávio Rocha, CEO da Riachuelo, diz que o programa tem um potencial revolucionário ao gerar empregos onde antes não existia nenhuma atividade produtiva. "Havia municípios de 20 mil habitantes que viviam do Fundo de Apoio ao Trabalhador Rural (Funrural), do Bolsa Família e com a elite pendurada na prefeitura", argumenta.

Ele afirma, no entanto, que a insegurança jurídica prejudica a expansão do "Pró Sertão" – alvo, segundo ele, de fiscalizações intimidatórias do Ministério Público do Trabalho (MPT). "O céu era o limite. Eu tinha condições de criar 100 mil empregos (na região)". Para Rocha, a melhora das condições de vida dos trabalhadores não é alcançada através da criação de normas trabalhistas, e sim pela demanda e competição por mão de obra.

A suposta geração de postos de trabalho por meio do "Pró Sertão" é contestada pelo presidente da Federação dos Trabalhadores na Indústria do Rio Grande do Norte, Joaquim Bezerra de Meneses. "Funcionários estão sendo demitidos nas maiores confecções enquanto são criadas estas facções terceirizadas no interior. Ou seja, estão trocando seis por meia dúzia", acredita.

O crescimento da terceirização no setor, diz o juiz Alexandre Érico Alves da Silva, pode gerar mais doenças ocupacionais e acidentes. "No Rio Grande do Norte, a maioria das costureiras que trabalham já há algum tempo na profissão estão adoecendo", afirma. "Tendo em vista que a estrutura dessas facções é muito mais carente do que a das grandes empresas, a perspectiva é a de que isso permaneça e até se eleve". Ele avalia que muitas estão instaladas em galpões inapropriados, carecem de recursos financeiros para investir em medidas de segurança e, por conta da demanda, são obrigadas por vezes a exigir jornadas extensas.

Atualmente, segundo o juiz – que coordena o Programa Trabalho Seguro do Tribunal Regional do Trabalho no Rio Grande do Norte – doenças laborais representam entre 30% e 40% das ações recebidas pela Justiça do Trabalho local. A maioria, diz ele, diz respeito ao ramo da indústria têxtil.

A Repórter Brasil entrou em contato com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande do Norte, que coordena o "Pró Sertão", mas o órgão não respondeu à solicitação de entrevista.

Funcionárias trabalham para cumprir metas da lousa, modelos das peças são definidos pelo varejista (Foto: Lilo Clareto)

Tábua de salvação

Apesar dos problemas, é inegável que as oficinas de costura tornaram-se uma importante alternativa para a população do Seridó, assolada por uma longa estiagem que já dura quase cinco anos e que prejudica a economia agrícola tradicional. Especialmente para as mulheres, a costura representa hoje um novo horizonte numa região onde há poucos empregos formais. "Eu tenho 38 anos e este é o meu primeiro trabalho com carteira assinada", revela Maria Elineide de Macedo, funcionária de uma dessas facções.

Por isso mesmo, o medo de ter as portas fechadas no setor inibe denúncias de trabalho precário. "Ainda hoje, em algumas empresas, há dias em que a jornada começa às sete da manhã e pode ir até às dez da noite", revela uma trabalhadora do setor ouvida pela Repórter Brasil. Ela explica que muitas oficinas ainda operam sob regime de produtividade. "Se você não cumpre a meta, fica depois do expediente costurando as peças que faltaram", diz.

"Já aconteceu comigo, há uns cinco anos, de sair do trabalho às duas da manhã. Ou então de sair à meia noite o para entrar às cinco da manhã no dia seguinte", conta outra costureira. "Numa noite dessas o meu marido veio e me tirou da fábrica. Disse que eu não estava passando fome para ter que passar por isso." Ela ressalta, no entanto, que esse tipo de situação diminuiu sensivelmente nos últimos anos. Uma das razões seriam as auditorias mais rígidas dos varejistas contratantes sobre as condições trabalhistas nas oficinas da região.

Buscar melhorias para o trabalhador do semiárido é um desafio para o Sindicato das Costureiras. A entidade, sediada em Natal, quase não tem associados no interior. "Existem facções que estão a 400 quilômetros daqui. Não temos como acompanhar tudo", explica a presidente da entidade.

Em geral, as costureiras do sertão recebem R$ 793 por mês – cinco reais a mais do que o salário mínimo – para labutar em uma jornada semanal de 44 horas. Segundo o sindicato, elas não recebem os mesmos benefícios em comparação com as costureiras das grandes confecções na região metropolitana. Prêmios de produção – que podem chegar a R$ 300 reais/mês – e planos de saúde para os trabalhadores são alguns dos itens previstos em acordos coletivos com empresas de Natal. "Aqui (na capital) nós não ganhamos menos do que mil reais", revela Maria dos Navegantes.

A perda de empregos na região, impulsionada pela terceirização para o interior, preocupa a presidente do Sindicato das Costureiras. "Em dezembro de 2014 a Guararapes tinha 10 mil funcionários, e agora são 8,5 mil", conta Maria dos Navegantes. É quase metade dos trabalhadores que, segundo a entidade, batiam cartão na indústria há seis anos.

Flávio Rocha, da Riachuelo, afirma que a fiscalização do MPT foi um dos principais motivos para a diminuição do número de empregados na fábrica da Guararapes, apesar do crescimento da Riachuelo – segundo ele, a varejista teria dobrado de tamanho nos últimos cinco anos. Em 2012, o MPT ajuizou uma ação contra a Guararapes cobrando multa de R$ 27 milhões por descumprimento de normas de saúde e segurança. "Tivemos que assinar um acordo com 40 cláusulas absolutamente leoninas. Isso feriu de morte a competitividade (da fábrica)", diz o CEO da Riachuelo, que questiona: "Foi quando o meu pai [Nevaldo Rocha, fundador do grupo] nos disse: 'vocês estão liberados, produzam onde quiserem.'"

Posição das empresas

Segundo nota do grupo Riachuelo, a decisão de expandir a terceirização na atividade de costura deveu-se ao objetivo de gerar emprego e renda no interior do estado e trazer para o mercado interno parte da produção de "jeans" antes fabricada no exterior.

O grupo afirmou ainda que sua equipe de auditores tomou providências em relação ao fornecedor citado pagando salários abaixo do mínimo (o nome da oficina será omitido para evitar represálias à funcionária ouvida pela Repórter Brasil). De acordo com a empresa, o pagamento de dezembro foi integralmente recebido pelos trabalhadores, assim como o 13º. Sobre os salários devidos nos meses anteriores, a Riachuelo diz que deu um prazo até janeiro de 2016 para a empresa regularizar a situação.

A empresa afirma realizar visitas surpresa nos fornecedores, além de disponibilizar um canal de denúncia anônima para os trabalhadores. Desde 2013, onze oficinas já teriam sido alvo de rescisão contratual devido a irregularidades graves ou à reincidência no descumprimento de normas trabalhistas. Atualmente produzem roupas para a Riachuelo 74 oficinas no Rio Grande do Norte, com um total aproximado de 2,2 mi funcionários.

Sobre seu fornecedor que fechou sem pagar direitos trabalhistas, a Hering diz que auditorias internas realizadas pela empresa indicaram o desrespeito a regras contratuais na oficina, entre elas o não cumprimento de normas trabalhistas. "O empresário foi notificado e, como não tomou providências, teve o contrato de prestação de serviço distratado em fevereiro de 2015", diz a Hering em resposta à Repórter Brasil. A empresa afirma que, desde então, nenhuma comunicação judicial sobre qualquer pendência foi feita. "A Cia. Hering busca resolver qualquer pendência trabalhista, porém sempre observando a relação entre pessoas jurídicas (com o proprietário da facção)."

Além de auditorias internas, a Hering diz que checa mensalmente documentos enviados pelos fornecedores para comprovar o cumprimento das normas trabalhistas. A empresa afirma ter realizado 212 auditorias nas oficinas de costura no Rio Grande do Norte em 2015.

Maria dos Navegates, presidente do sindicato das costureiras, diz que os salários e os benefícios são menores para as costureiras do sertão (Foto: Lilo Clareto)

"Ficamos com os salários atrasados"

"Éramos uns 30 funcionários. Até que, no começo de 2015, a Hering começou a mandar poucas peças pra gente costurar. Alguns dos trabalhadores foram demitidos, mas, em fevereiro, a coisa piorou ainda mais. Um lote de peças foi costurado errado e a oficina deixou de receber o pagamento por conta disso. Logo depois a Hering parou de trabalhar com a gente. Aí foi uma confusão. A facção [oficina] fechou e ficamos com os salários atrasados. Com alguns trabalhadores o patrão fez acordo, deu baixa na Carteira de Trabalho e ao menos liberou o FGTS. Mas com outros ele não resolveu nada. Isso já tem uns dez meses e a minha demissão ainda não foi assinada por ele. Por isso eu não consigo arranjar outro emprego. Agora vou começar a trabalhar como vendedora ambulante nas cidades da região. É o jeito."

(Fernanda foi funcionária de uma oficina de costura fornecedora da Hering.)

"Tenho medo que descubram que fui eu que denunciei"

"Foi há três meses que a facção começou a funcionar. Nos primeiros quinze dias fizemos peças de teste para a Guararapes e, na metade de setembro, começamos a produzir pra valer. Nós recebemos R$ 300 de pagamento no primeiro mês. No segundo, R$ 480. Estamos esperando esse mês (dezembro) para ver como vai ser. Até agora ela não disse nada.

Muitos trabalhadores se calam sobre esse tipo de coisa porque têm medo de se queimar na região, onde todo mundo se conhece. Esta difícil emprego até na capital, imagina aqui no interior. Eu sou mãe solteira, tenho filho pra criar.

Na nossa fábrica tem um cartaz enorme da Guararapes pendurado, com um telefone da empresa para denúncias. Pensei em ligar inúmeras vezes, mas eu tenho medo que descubram que fui eu que denunciei. Não posso ficar queimada. Somos uns 20 funcionários, e muitos estão pensando em desistir. Esse foi o assunto das conversas hoje."

(Maria, funcionária de oficina de costura que abastece a Guararapes, do grupo Riachuelo.)

A íntegra da reportagem está no site da Repórter Brasil.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


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