Quero agradecer ao Demônio pela graça alcançada
Leonardo Sakamoto
15/01/2016 14h29
– Eu queria agradecer a Deus por mais esta conquista e dizer que sem a força dele, a minha vida e a vida de todos aqui não fariam sentido.
Não posso negar que sinto uma certa tristeza em assistir a cerimônias de premiação, finais de campeonatos esportivos, formaturas e afins nas quais o discurso do agraciado seja inteiramente baseado em alvíssaras a Jeová, Alá ou demais nomes dados ao deus ou à deusa de Abraão (como não houve comprovação de gênero, cabem os dois).
Não tanto pelo ato em si. Ele pode atribuir a razão de sua vitória a quem quer que seja – deus, sua mãe, Frank Underwood, J. Pinto Fernandes – que, como Carlos Drummond de Andrade avisou, não estava na história.
(Particularmente, acho que deus – se existir – não gosta de ser culpada por cada gol na face da Terra. Pois nem mesmo deve gostar de futebol. E se ela curtir bocha e tranca? E, desconfio que, se houver uma Inteligência Suprema, será esperta o bastante para não influenciar na vida de ninguém.)
O problema é o proselitismo religioso. Por isso, adoraria que alguém, sob os holofotes e os microfones de toda a mídia, resolvesse, um belo dia, dizer algo como:
– Eu queria agradecer ao Diabo, ao Capeta, ao Tinhoso, a Lúcifer por mais esta conquista e dizer que sem a força dele, a minha vida e a vida de todos aqui não fariam sentido.
OK, um atleta que isso proclamasse seria, certamente, repreendido, condenado, repudiado, vilipendiado, destroçado, moído, exilado, reciclado. Acusado de louco.
Afinal, o deus cristão representa tudo o que há de bom (há controvérsias), enquanto o Tinhoso representa a negação de tudo isso (também há controvérsias,esse mundo é por demais maniqueísta!), o que faria com o que o ato de agradecimento fosse visto como uma forma de difundir o mal.
Se você ficou magoado com essa comparação, troque o diabo e deus por outras figuras mitológicas:
– Eu queria agradecer a Yoda por mais esta conquista e dizer que sem a força dele, a minha vida e a vida de todos aqui não fariam sentido.
Estamos acostumados a aceitar passivamente que o cristianismo seja a religião oficial do país. Mesmo o país sendo teoricamente laico. A ponto de muitos não acharem descabido sessões de proselitismo levadas a cabo por figuras públicas em qualquer momento.
Não nego que fico com um pouco de vergonha alheia em alguns casos. Por exemplo, sabe quando jogadores de futebol ficam em roda rezando, no gramado, antes de bater uma sequência de pênaltis ou comemorando a tal sequência bem batida? Não sinto vergonha por quem está em roda, mas pelo locutor esportivo que, naquele momento, comemora o ato como um "exemplo da cultura brasileira". Vontade de me esconder e nunca mais aparecer.
Ah, mas o deus cristão está em nossas raízes históricas! Adoro quando alguém apela para as "raízes históricas" para discutir algo. A escravidão, a sociedade patriarcal, a desigualdade social estrutural, a exploração irracional dos recursos naturais, a submissão da mulher como mera reprodutora e objeto sexual, as decisões de Estado serem tomadas por meia dúzia de iluminados ignorando a participação popular, lavar a honra com sangue, caçar índios no mato, tudo isso está em nossas raízes históricas.
Queimar pessoas por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de muita gente.
Respeito a liberdade e a dignidade de credos e fés. Mas sinto uma paúra no estômago porque nem todos credos e fés respeitam a liberdade e a dignidade dos outros. E existem diversas formas de desrespeitar a fé alheia. O problema é que as reclamações surgem de uma maioria cristã, apesar dela ser a principal responsável pela sistemática opressão de outras minorias.
É um debate pequeno? Nem de longe, pois é simbólico. Mas, cuidado, porque essa discussão mata há muito tempo.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.