A Justiça e a barreira higiênica entre ricos e pobres no Brasil
Leonardo Sakamoto
19/02/2016 09h07
O Supremo Tribunal Federal decidiu que basta uma condenação em segunda instância para que um réu cumpra pena, mesmo que ainda caibam recursos aos tribunais superiores. Tem tanta gente boa debatendo a questão para um lado e para o outro que gostaria de aproveitar o momento para outras provocações.
Primeiro: colega jornalista, bora parar de chamar advogados, magistrados, promotores de "doutor" e "doutora" em entrevista? Um "senhor" e "senhora" já é bastante respeitoso para quem não defendeu tese de doutorado quando não couber o "você". Não estamos mais na República dos Bacharéis – eu acho.
Segundo: como bem me lembrou um sábio juiz, estamos acostumamos a criticar prefeitos, governadores, presidentes, vereadores, deputados e senadores mas, não raro, poupamos juízes, desembargadores e ministros. Fascinante que uma das consequências de atribuir sabedoria sobrenatural à toga é de que o Judiciário, por falta de pressão e controle externos, é o menos transparente dos poderes.
Terceiro: enquanto a proporção de negros nas prisões for maior que a de negros na sociedade, podemos dizer que a justiça é uma construção mal feita e inacabada por aqui.
Mas indo ao ponto do post: que tal a gente acabar com a prisão especial provisória para quem conta com diploma de curso superior?
O artigo 5° da Constituição Federal diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Mas, na prática, a legislação brasileira confere o privilégio de não ficar em cárcere comum até o trânsito em julgado de uma decisão penal condenatória para alguns grupos. Como os detentores de diploma de curso superior. Com a decisão do Supremo, esse tempo vai se encurtar, mas a cela especial continua lá.
O Senado Federal havia derrubado essa aberração presente no artigo 295, inciso VII, do Código de Processo Penal, mas a Câmara os Deputados barrou a mudança. Isso é bastante paradigmático em um país em que milhares de pobres seguem presos sem julgamento de primeira instância – um escárnio.
É claro que prisão especial depende de disponibilidade de vagas. O problema, no entanto, é o critério de discriminação. A lei afirma que juízes ou delegados de polícia têm direito à prisão especial, o que faz muito sentido para evitar vinganças e afins. Mas qual o critério para o diploma de curso superior? Manter uma barreira higiênica entre ricos e pobres.
Precisamos de leis com previsão de privação de liberdade para crimes graves – não para coisas ridículas como venda de maconha. E que sejam punidos, conforme essas leis, os que causaram grandes danos à vida dos outros ou à sociedade.
Prisões estão lotadas de pobres, com crimes ridículos, enquanto muitos ricos sabem que, dificilmente, serão – agora ou no futuro próximo – responsabilizados por seus delitos e obrigados a cumprir pena por contarem com bons advogados.
O atual Código de Processo Penal passou a vigorar em 1942, quando poucos tinham acesso ao ensino superior – situação que está mudando no Brasil. Talvez a cela especial acabe quando o acesso ao ensino superior tornar-se tão comum quanto a alfabetização – o que pode levar algum tempo, mas há de acontecer. Mas, daí, não será mérito de nossa capacidade de avançar como sociedade através da proposição de leis, mas a própria lei cairá em desuso por ser letra morta.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.