O culto à ignorância passará o cristianismo como principal crença do Brasil
Leonardo Sakamoto
06/03/2016 16h07
Estamos acostumados a ouvir que "a educação é a saída para o país".
E se ela é a saída, sua ausência significa o atraso, o obscurantismo.
Tanto que iletrados são (bizarramente) considerados um estorvo para a nação, seres incapazes, passíveis de piedade ou preconceito. São a representação viva da negação dessa educação – por mais que essa educação formal, em verdade, lhes tenha sido negada pelo Estado ao longo de toda sua vida (enquanto a superexploracão de seu trabalho sempre esteve mais do que garantida).
Paradoxalmente, a repetição dessa ideia (a educação é a saída para o país) como mantra não garantiu que a população a entendesse. Pelo contrário, seu significado foi esvaziado nesse processo e transformado em panaceia para todos os males sem que fosse necessário um mínimo de reflexão sobre o que ele significa.
Quando alguém está insatisfeito com sua vida, mas não sabe como demonstrar essa insatisfação, e quer demonstrar isso de alguma forma em um protesto, trata de carregar uma placa "Por mais educação". Que não significa absolutamente nada, além de um grito de desconforto. Não é uma pauta concreta e factível como "Contra o fechamento de escolas pelo governo estadual" ou "Pela reposição das perdas da inflação aos salários dos docentes", por exemplo.
Tanto é vazia que, em uma jogada de marketing, o governo federal escolheu o péssimo "Pátria Educadora" como seu lema (para saber porque acho péssimo, leia aqui).
Essa ideia esvaziada ajuda a sustentar uma hipocrisia cavalar. Todos falam que educação é importante, mas o conhecimento – que é seu resultado – é desconsiderado, desprezado, humilhado e, por vezes, amaldiçoado. Enquanto isso, a falta de conhecimento é louvada se vem acompanhada de retórica, ou seja, de poder de convencimento.
Especialistas que dedicaram sua vida para entender e analisar química, física, economia, botânica, engenharia, história, entre tantos outros campos do saber, com anos ou décadas de pesquisas, são ignorados em debates na rede mundial de computadores.
Pois diante da possibilidade trazida pela internet de opinar sobre praticamente qualquer assunto e ser visto e ouvido, muitos acreditam que são especialistas profundos sobre qualquer assunto. Até aí, tudo bem, é o direito e a liberdade dde cada um. O problema é que a sociedade não raro chancela uma opinião superficial com a mesma credibilidade que aquela baseada em anos de reflexão. Que pode estar errada, mas merece ser compreendida, analisada e, se for o caso, refutada, ao contrário de um achismo – que não demandaria a mesma energia e atenção.
"O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade", afirmou o recém finado Umberto Eco. "Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel."
Ou seja, a atenção no debate é transferida de quem suou muito para ter conteúdo para quem é capaz de conduzir o discurso com maestria baseado, não raro, em um discurso vazio e sofismas.
E se o resultado de uma pesquisa realizada de forma séria é contrário ao que muitas pessoas acreditam, negando suas verdades pré-estabelecidas e mostrando que o mundo que ela conhece é mais complexo do que imaginava, essa pesquisa pode sofrer bombardeio desses "idiotas da aldeia".
Afinal de contas, como ousam esses cientistas imbecis dizer que Deus não criou o mundo em sete dias, a Terra não ter menos de 10 mil anos, a escravidão e o machismo não serem inerentes à raça humana, os negros não serem biologicamente inferiores? Como ousam trazer elementos que comprovam que é preconceito e não medicina a tentativa de curar gays, lésbicas e transexuais? Ou mostrar dados e tendência de homicídios para mostrar que a polícia daqui mata mais jovens negros ou que há uma relação direta entre ausência de serviços públicos, a falta de perspectivas para os mais jovens e o crescimento de grupos violentos em comunidades pobres?
O pior não é a ignorância em si porque o vazio pode ser transformado e, das trevas, sempre pode surgir luz. Mas são pessoas – que nunca se debruçaram sobre nenhum assunto por mais de dois minutos – juntarem seus preconceitos e sua retórica e cravarem a inutilidade de um campo do conhecimento através de suas contas nas redes sociais, arrastando milhares, para não dizer milhões, de pessoas para o buraco com elas.
Algumas dessas pessoas são alçadas à categoria de vingadoras por grupos que se sentem oprimidos, sejam deles ricos ou pobres. Pessoas que querem seu mundo de volta, que desejam o restabelecimento das coisas como sempre foram e querem que o conhecimento se adeque à sua realidade. Ou desapareça daqui.
A educação é a saída para o país. Mas o primeiro passo é um esforço coletivo, com políticas públicas, atuação da mídia e muito debate, para que todos entendam o que essa frase significa.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.