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É Sábado de Aleluia. Dia de malhar o Judas que sorri para nós no espelho

Leonardo Sakamoto

26/03/2016 13h43

Hoje é Sábado de Aleluia. Dia da Malhação do Judas.

Para quem não é ou não foi cristão, nem acompanha as notícias, a tradição ibérica consiste em fazer um boneco de pano, papel, serragem, jornal, o que seja, para representar Judas Iscariotes – o delator de Jesus – e humilhá-lo, xingá-lo, surrá-lo, queimá-lo, alfinetá-lo, explodi-lo.

Quando me lembro das pauladas em Judas, fico pensando como essas tradições esquisitas são consumidas por nós como a coisa mais normal do mundo, assentando-se em nossa formação com seu rosário de símbolos e significados. Lembrando que Judas resolveu ele próprio se enforcar diante do remorso que o consumiu, não sendo necessária nenhuma turba enfurecida, de acordo com a mitologia cristã.

Claro que a Malhação do Judas não é um treino para os linchamentos que acontecem aqui e ali. Mas a alegria de trucidar o boneco e, através daquele ato, descarregar as iniquidades e injustiças que enfrentamos no dia a dia tem um paralelo com a sensação de (falso) reequilíbrio obtido através de um linchamento que faz "justiça" quando a Justiça convencional não é o bastante.

Foto: Renato Mendes/Brazil Photo Press/Folhapress

O discurso de ódio transforma a massa em turba provoca distorções de entendimento sobre as palavras que estão na origem da fé das pessoas. Estudei em escola adventista por nove anos e, ao mesmo tempo, participei bastante da vida na igreja católica perto de casa. Hoje, como todos sabem, vou para o inferno.  Mas por conta do meu passado, sei razoavelmente o que está escrito nos evangelhos.

O discurso de intolerância que grassa na boca de muita gente que se acha "o povo de deus", de católicos a neopentecostais, não está nos quatro livros do Evangelho cristão. Pessoas que consideram um absurdo não comer peixe na Sexta-Feira Santa ou não ir à missa/culto no Domingo de Páscoa, mas enchem a boca para falar que a solução para a criminalidade é "bandido bom é bandido morto" e, diante do atendimento a uma pessoa em situação de rua, grita "tá com dó? leva para casa".

Não dá para dizer para um desconhecido "você não entendeu nada do que o Nazareno disse!". Seria muito arrogante e ofensivo à liberdade de que ele dispõe. Mas que dá vontade, ah, dá, principalmente porque liberdade não é algo absoluto, acaba quando você a usa para causar dor a alguém.

O fato é que se tivessem interpretado por uma forma mais humana o que significa amar o seu semelhante como a si mesmo, dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, e todo o restante, entenderíamos que professar homofobia, racismo e machismo não faz sentido algum.

O que significa amar alguém de verdade? E o que significa submeter alguém à minha vontade?

Como já disse aqui, tenho a certeza de que se Jesus, o personagem histórico, vivesse hoje, defendendo a mesma ideia presente nas escrituras sagradas do cristianismo, mas atualizando-a para os novos tempos, seria humilhado, xingado, surrado, queimado, alfinetado e explodido não só num Sábado de Aleluia, mas também em dias menos santos. Seria chamado de defensor de bicha, mendigo e sem-terra vagabundo. Olhado como subversivo, acusado de "heterofóbico" e "cristofóbico". Alcunhado como agressor da família e dos bons costumes. Finalizado como comunista.

Daí, a passagem mais legal dos Evangelhos: Lucas, capítulo 23, versículo 34: "Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto