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"Viúvas de marido vivo": Como vivem famílias de vítimas da escravidão

Leonardo Sakamoto

06/04/2016 12h26

Em Codó, no Maranhão, um dos municípios brasileiros de onde mais migram trabalhadores que foram submetidos à escravidão contemporânea, esposas cuidam sozinhas de seus filhos, que ficam meses ou anos sem ver o pai, tornando-se por vezes viúvas de marido vivo.

Viúvas da Migração: Esposas de vítimas do trabalho escravo cuidam sozinhas de seus filhos, por Stefano Wrobleski, de Codó (MA), para a Repórter Brasil

Tereza Pires da Conceição, vive na periferia de Codó com sua filha Andreia, que foi deixada pelo marido com seus filhos. Ele foi trabalhar fora e não mais voltou. Dona Tereza vive em dificuldades para ajudar a filha e os muitos netos. Fotos: Lilo Clareto/Reporter Brasil

A pobreza extrema e falta de perspectiva de empregos em Codó, um município com 118 mil habitantes no Maranhão, leva semanalmente dezenas de trabalhadores a deixar suas casas e cruzar o país em busca de trabalho. Quem fica são as mulheres (esposas e irmãs dos migrantes) que cuidam sozinhas, por meses ou anos, dos filhos que ficam para trás. Como o dinheiro enviado pelos homens para casa é pouco, o principal meio de sobrevivência destas famílias é o Bolsa Família, que alcança dois terços das 27 mil famílias do município.

"Um dia tem só arroz, outro dia não tem nada pra comer. A vida aqui é dura demais", lamenta Andreia Pires da Conceição, que vive em uma pequena casa na periferia de Codó. O pai de cinco dos seus seis filhos mudou-se para São Paulo em busca de emprego e acabou ficando. Depois que o casal se separou, ele só entra em contato por telefone e não envia dinheiro para os filhos.

"Um dia tem só arroz, outro dia não tem nada pra comer", conta Andreia (dir.) ao lado de sua mãe, Tereza (esq.)

Na casa de Andreia, hoje, são 17 pessoas que compartilham o espaço de seis cômodos e dependem do Bolsa Família que ela, sua cunhada e sua mãe recebem por manter as crianças na escola. Além da frequência escolar, a renda mensal também é critério no programa federal e não pode ultrapassar os R$154 por pessoa da família.

Além do programa de assistência do governo e do arroz plantado pelo pai de Andreia, a renda em casa é complementada pelo que dois dos três irmãos de Andreia, que estão no interior do Mato Grosso, conseguem mandar. Eles trabalham descarregando caminhões de soja, em uma jornada que começa ao meio-dia e às vezes termina só depois das 23h, segundo contam à mãe, Tereza, de 57 anos.


As crianças da casa, que estão em parte na foto, sobrevivem com o que as mães recebem do governo

Mas nem sempre o dinheiro chega. Não é todo mês que os irmãos conseguem guardar parte do salário para enviar a Tereza, Andreia e as crianças.

Além da soja, é principalmente na construção civil e na cana-de-açúcar que os migrantes acabam encontrando trabalho. É entre migrantes empregados nestes setores que está a maior parte das 413 vítimas de trabalho escravo resgatadas em todo o país entre 2003 e 2014 que eram de Codó – um dos maiores polos de saída de migrantes do país. Dos libertados, apenas 14 eram mulheres, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra. A proporção reflete uma tendência de todo o país: na maioria, os homens trabalham fora, enquanto as mulheres cuidam da casa e das crianças.

As longas viagens feitas por estes trabalhadores deixa saudade aos que ficam e reduzem a rede de proteção dos que vão. No caso de Tereza, a mãe de Andreia, o contato com os filhos que partiram para o Mato Grosso é difícil. Valdivino, um dos rapazes, não dá notícias desde dezembro de 2015, quando teve seu celular roubado. "Ele ficou só, enquanto os companheiros vieram tudinho. Depois que os outros vieram foi que a gente teve notícia que ele tá lá, trabalhando. Faz mais de três meses que nós conversamos com ele da última vez", conta Tereza.

Expulsos da Terra – A casa de Andreia e Tereza fica em Codó Novo, um dos bairros mais vulneráveis da cidade, em que o esgoto atravessa a céu aberto as ruas de barro. Antes de migrar para o bairro periférico, a família vivia na zona rural, onde o cultivo da terra garantia um mínimo de comida na mesa. Mas a família foi expulsa por um latifundiário e, por R$50 por mês, alugam hoje a casa onde estão há três anos. "Estamos nesse bairro porque não temos casa em lugar nenhum", diz Tereza.

Apesar da expulsão do local onde moravam, José Rocha, pai de Andreia, caçou um pequeno pedaço chão a 60 quilômetros de casa, onde cultiva o arroz que garante o sustento mínimo da família. Flávia Moura, pesquisadora da Universidade Federal do Maranhão e autora da dissertação de mestrado "Escravos da Precisão: economia familiar e estratégias de sobrevivência de trabalhadores rurais em Codó", explica que a população de Codó, apesar de estar em uma cidade grande, é composta por trabalhadores muito atrelados à terra: "Por mais que tenha havido uma predominância do latifúndio, os trabalhadores insistem em manter a roça de subsistência. A migração é muito mais estratégica porque não circula dinheiro na cidade. Há só algumas pequenas empresas na cidade, mas elas não seguram a economia".

Ismael, neto de dona Tereza.

O bairro de Andreia é um dos que mais recebe novas famílias, as quais são forçadas a sair da zona rural para a cidade e que, sem mais espaço para a agricultura de subsistência, veem seus homens viajando para garantir a sobrevivência com o dinheiro que sobrar. No município, de acordo com o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, a população em área urbana subiu de 56% para 68% entre 1991 e 2010, apesar de um crescimento populacional de 0,86% no período. O dado mostra que, com uma população quase estagnada, o aumento de pessoas na cidade vem principalmente da migração de famílias do campo.

São estas novas famílias da cidade que mais concentram os migrantes de Codó que serão escravizados pelo Brasil. Cerca de um terço dos 413 trabalhadores resgatados que eram do município declararam aos fiscais Ministério do Trabalho e Previdência Social residirem em Codó Novo ou em Santa Teresinha, um bairro vizinho.

Quando viviam na zona rural, o pai de Andreia trabalhava com a ajuda dos filhos e netos cultivando a terra e fazendo crescer os alimentos que sustentariam a família pelo ano. Já Andreia e Tereza, além de cuidar da casa, se ocupavam da retirada dos cocos de babaçu, presentes nas terras de toda a região de Codó. Com o fruto, elas faziam azeite e carvão. A atividade é tradicional para as mulheres do campo desta parte do Maranhão, que costumam usar os produtos do babaçu em casa ou vendê-los na cidade, complementando a renda da família.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto