Golpe e Impeachment: As palavras têm o poder que conferimos a elas
Leonardo Sakamoto
23/04/2016 11h21
Se as pessoas soubessem o poder real de algumas palavras não aceitariam tão facilmente que elas fossem escancaradamente escondidas por aqueles que já sabem de sua força. Pois uma palavra quando expelida por uma multidão que é plenamente consciente de seu significado é capaz de mudar muita coisa.
Anos atrás, articulando a implementação de um projeto para prevenção à escravidão contemporânea entre crianças e adolescentes na região da rodovia Transamazônica, ouvi um pedido inusitado. Autoridades locais solicitaram que o termo "escravo" não fosse usado na formação dos professores e agentes sociais envolvidos.
A palavra se tornara maldita em alguns lugares do Pará, tão condenada quanto conjurar o capeta. A autocensura diante do medo pode fazer o tema diminuir em importância e submergir frente a outras prioridades. Para certos produtores rurais da região, que usam de violência para resolver seus problemas, aberrações como escravidão são permitidas na fronteira agrícola. Mas a verdade, não.
Sabemos, é claro, que o que convencionamos chamar de "certo" ou "errado" ou mesmo "belo" ou "feio" é decorrente de um processo de formação de significados que depende, por sua vez, do pensamento hegemônico, que pertence ao grupo que está por cima da carne seca em cada sociedade. Ou seja, não é Deus, envolto em legiões de querubins e arcanjos, que desce até a Terra e define tudo isso. São pessoas, grupos sociais que criam significados e os recriam ao longo do tempo.
Quem você acha que definiu que o padrão de beleza vigente reside em homens e mulheres brancos, magros, com nariz afilado e cabelo liso? Comunidades negras da África subsaariana? Uma nação indígena no Alto Rio Negro?
"Verdade" pode ser algo construído também. Se há uma enxurrada de versões semelhantes sobre um mesmo fato, a versão contrária, com menos defensores, não raro passa a ser tratada como mentirosa ou falsa. Quando todas são apenas versões e merecem ter a mesma atenção.
Pois eu posso construir uma verdade garantindo a ela "reputação", elevando-a à categoria de Treding Topic no Twitter e pautando-a nos principais veículos de comunicação de massa, por exemplo, e "credibilidade", fazendo com que formadores de opinião falem sobre ela o tempo todo ou pedindo para especialistas atestarem sua validade. Mesmo que essa "verdade" seja apenas parte da história.
E quem consegue fazer isso com mais facilidade? Quem tem poder econômico, político e midiático. Isso é jornalismo para iniciantes, apesar de nem sempre a imprensa levar muito a sério.
Muitas empresas não dizem mais que "demitiram" 1.300 empregados. Falam que "descontinuaram os contratos" ou "interromperam o relacionamento" com os empregados – que também mudaram de nome: "colaboradores". Uma porrada no rosto da namorada é tratado por muitas famílias brasileiras como "desentendimento de casal". Uma tentativa de estupro ou de violência sexual é considerado por "forçar a barra" por algumas notícias.
Da mesma forma que a pessoa que defende que brancos tenham mais direitos efetivados que negros e indígenas, que homens devem mandar e mulheres, obedecer, que ricos precisam ser mais protegidos do que pobres, que ciclistas são comunistas e devem ser combatidos, que mulher que aborta deve ir presa e que casamento homoafetivo deveria ser proibido está "exercendo simplesmente seu direito à liberdade de expressão".
Por isso é tão importante os grupos que não detém poder econômico, político ou midiático participarem ativamente dessa disputa simbólica e usarem os termos que estão à altura da agressão que sofrem: isso é machismo, racismo, homofobia, xenofobia, preconceito.
Violência, na verdade, é manter o silêncio diante de uma injustiça, mesmo que você não goste dos envolvidos. Pois isso afeta a forma como uma sociedade democrática trata a todos os cidadãos, o que inclui você e eu. Lembrando que a própria Justiça é feita de interpretações vivas a partir da letra fria da lei.
Expressões e interpretações de significados têm o poder que juízes, políticos, empresários conferem a elas. Mas esse processo pode e deve ter a população como protagonista, exercendo o mesmo poder, chamando as coisas pelo que elas realmente são, construindo uma sociedade realmente democrática.
Como impeachment. Ou simplesmente golpe.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.