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Elas estão (des)controladas: O Bonde da Mulher Brasileira

Leonardo Sakamoto

03/05/2016 10h23

Uma audiência pública no Senado Federal discutiu a legalização do direito ao aborto até as 12 primeiras semanas com especialistas pró e contra. Em um contexto de retrocesso de conquistas sociais e de um Congresso em que o fundamentalismo religioso tem gritado alto, a importância desse debate, realizado na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, para os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é grande. Para falar sobre o tema e a audiência, publico um texto da cantora, compositora e ativista Karina Buhr, especial para este blog.

Elas estão (des)controladas: O Bonde da Mulher Brasileira, por Karina Buhr*

"A mulher não quer…". "A mulher quer é…". "Mulher que é mulher não…". "Mulher de fato não…". Estamos acostumadas a ouvir no dia a dia o que é ser mulher e o que supostamente queremos. Como se fôssemos uma só, como se existisse "A" Mulher, como se fôssemos uma novidade, ou uma aberração, como se não fôssemos simplesmente gente.

Controlar o corpo das mulheres é arma antiga e, não por acaso, o aborto é legalizado há muito tempo em países com ampla garantia de direitos civis e sociais, com diferenças e salário menor entre homens e mulheres e grau de escolaridade mais alta. A manipulação do direito sobre o próprio corpo faz parte de um combo, ferramenta de controle social, no caminho padrão de manter escravizada a parte mais pobre da população.

Ilustração: Karina Buhr

Tivemos, no dia 28, uma audiência pública sobre a SUG (sugestão legislativa) 15/2014, que regula o aborto pelo SUS. Enquanto acompanhamos o processo corrente de impeachment, à revelia dos votos da maioria da população, assistir a essa audiência é perceber na verdade a grande coerência entre tudo isso.

Em um país democrático onde o voto não vale nada, os corpos das mulheres não valeriam mesmo.

A garantia do direito de decisão sobre a continuidade de uma gravidez é, na maioria absoluta dos casos, proporcional ao desenvolvimento econômico e social dos países. Proibido em El Salvador, Afeganistão, Iran, Quênia… Legalizado na França (há 41 anos), Alemanha, Suécia, Dinamarca, Canadá, EUA…

A divulgação perene, no mundo todo, de dados oficiais que apontam que a proibição não diminui o número de abortos, apenas aumenta o número de mulheres mortas por abortos clandestinos também não importa aqui.

Somos um estado laico com um crucifixo brilhando, centralizado, num lugar de destaque na Câmara dos Deputados. Somos um estado laico onde se fala fervorosamente a palavra "pecado" no meio de uma discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos.

Grupos contra os direitos das mulheres sobre o próprio corpo se auto declaram "a favor da vida". A vida. De quem? Centenas de mulheres perdem a vida no Brasil por abortos clandestinos todos os anos. Pelo visto seguirão morrendo. As pobres, de maioria negra, são as ainda mais controladas por um sistema que garante tudo aos que já tem tudo e nada aos que nunca tiveram. O de sempre.

A audiência pública da SUG começou com Rosimeire Santiago, presidente do "Centro de Reestruturação pela Vida" dando a definição de mulher segundo o dicionário Aurélio e Michaelis. O ano é 2016.

O pastor, digo senador, Magno Malta foi quem propôs e dirigiu a audiência e se referia aos grupos presentes como os "pró aborto" e os "pró vida" (fato cada vez mais comum também na imprensa) ignorando que "Pró Vida" é uma marca de fantasia, não se trata de a favor da vida de fato.

Militantes contra os direitos das mulheres derramaram lágrimas ao microfone, dando detalhes de métodos abortivos cruéis como se isso estivesse sendo pleiteado por alguém. O que militantes pelos direitos das mulheres querem é justamente que esses métodos não sejam utilizados. Porque eles matam ou deixam sequelas físicas e emocionais gravíssimas. Num palanque oficial se assistiu a um filme de ficção de quinta categoria, onde foram citados dados errados, se manipulou a realidade e se falou em deus e comportamento ideal para donzelas.

Bocas salivantes descreveram abortos de maneira equivocada, citaram métodos como uso de solução salina e falaram que o "bebê que antes tomava aquela água pura, agora bebe uma água com veneno, que queima sua pele e arranca suas unhas". "A cabeça é cortada ao meio e depois arrancada", "A criança, se falasse, teria escolha?". "A mulher bem informada não recorre a esse genocídio". Se referiram a um embrião de semanas como "criança" e "bebê". A patifaria fez lembrar Tom Hanks naquele filme, chamando a bola de Wilson.

"É pela vida das mulheres" é o grito mais verdadeiro. Com a criminalização mulheres não deixam de abortar, elas morrem abortando, sob a batuta hipócrita dos, literalmente, homens da lei. Precisamos cuidar para que isso não aconteça. É pela vida delas.

No meio dessa fumaça tóxica argumentativa a professora Eloísa Machado de Almeida falou sobre argumentos constitucionais que confirmam a inconstitucionalidade da criminalização do aborto. "O primeiro deles é a dignidade humana.. .criminalizar significa, de uma só vez, violar a dignidade, a autonomia, a privacidade e também a saúde das mulheres."

Muito preocupante é não só o freio na conquista de direitos mas o perigo da perda de direitos adquiridos a duras penas, visto que atualmente mulheres (pobres) com casos de aborto garantido por lei encontram dificuldade no atendimento e projetos de retirada de direitos também são vistos com frequência, onde até a pílula do dia seguinte é questionada. Regredimos dia a dia e a situação, que já é aterradora principalmente para mulheres pobres, ainda tem risco de piorar.

O que está em questão não é sua opinião sobre quando a vida começa, o que está em jogo, na vida real, é quando a vida das mulheres acaba.

Mulheres abortam independente da opinião de quem quer que seja, é uma decisão pessoal, particular e o que está em jogo é a vida delas.

*Karina Buhr é cantora e compositora. Lançou recentemente o álbum "Selvática".

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto