Fica triste pela morte de Muhammad Ali, mas é racista no Brasil
Leonardo Sakamoto
04/06/2016 14h03
Precisamos de mais pessoas como Muhammad Ali.
Por conta da morte de Ali, estamos sendo cobertos por comentários de pessoas que louvam o esportista e esquecem o ativista, como se as folhas de uma árvore existissem sem o seu tronco e os galhos. Feito o que aconteceu por ocasião da morte de Nelson Mandela, quando lembravam do conciliador e não do ativista que usava de todos os meios possíveis para resistir.
É fascinante como há gente que ignora a complexidade da figura de Muhammad Ali e o que ele significou para seu tempo, falando do esporte e amenizando seu ativismo político.
Pessoas que se tornam maiores que os esportes que os alçaram à fama, por travarem a boa luta pela dignidade de todo um povo.
Por não aceitar que os Estados Unidos tratassem brancos e negros de forma desigual, optou pela desobediência civil. Negou-se a lutar no Vietnã, pagando um preço alto por isso em sua carreira e na vida pessoal.
O racismo nos Estados Unidos e o regime do apartheid, na África do Sul, não diminuíram por conta do sorriso bonito e de falas carismáticas de líderes, mas por décadas de luta firme contra a segregação.
"Não irei a 10 mil milhas da minha casa para ajudar a assassinar outra pobre nação, simplesmente para continuar a dominação dos brancos aos negros de todo o mundo. O inimigo real do meu povo está aqui. Se eu pensasse que a guerra traria liberdade e igualdade para 22 milhões do meu povo eles não precisariam me obrigar, amanhã mesmo eu iria. Não tenho nada a perder por defender meus princípios. Se eu for para a prisão, e daí? Nós estivemos presos por 400 anos."
Não por coincidência, mas por serem resultado de um tempo, essa fala de Ali na época estava em consonância com a ideia de resistência de Mandela ao ser condenado a 27 anos de prisão:
"Eu celebrei a ideia de uma sociedade livre e democrática, na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e o qual espero alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou pronto para morrer."
As histórias das lutas sociais ao redor do mundo são porcamente ensinadas. E a depender de como avance a proposta que tolhe a liberdade dos professores, impedindo que a história de ideias seja discutida livremente em sala de aula, a situação tende a piorar.
As ações por direitos civis nos Estados Unidos, a descolonização da Índia, o fim do apartheid na África do Sul, a independência de Timor Leste e as conquistas que tiraram direitos fundamentais do papel no Brasil pós-ditadura não foram obtidas através de longas discussões regadas a cafezinho e paciência. Isso é o que grupos no poder querem que acreditemos. Tudo isso foi obtido com base no diálogo, na desobediência civil, no sangue, suor e lágrimas de muita gente.
Muitos que hoje lamentam por Ali e lamentaram por Mandela detestam manifestações públicas e mudanças no status quo, exatemente o que ele fazia e pregava. O fato é que eles são inspiração. Com eles, acreditamos que é possível dizer não para o Estado e os interesses particulares que ele, por vezes, defende.
Muitas pessoas adoram um revolucionário desde que esse passe pelo processo de pasteurização da indústria cultural e aparece em estampas de camisetas, mas repudiam qualquer grito que venha da periferia das grandes cidades brasileiras – onde ocorre um genocídio da juventude negra nas mãos de policiais, de milícias, de traficantes, de grupos de extermínio.
Leio reclamações da violência de protestos quando estes vêm dos mais pobres entre os mais pobres – "um estupro à legalidade" – feitas por uma legião de pés-descalços. Ou por povos indígenas, cansados de passar fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles. Ou ainda por professores que exigem melhores salários e resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e pressionar para que o poder público mude o comportamento. Ou de mulheres que pedem simplesmente para serem tratadas com os mesmos direitos garantidos aos homens.
Enquanto você leu este texto, um jovem pode ter sido morto na periferia ou uma jovem estuprada. Mas tudo bem. Devem ser apenas uns vândalos, não "homens de bem" exemplares como Ali e Mandela. Não, milhares de Alis e Mandelas, mas também de Rosas Parks, morrem diariamente em nossas periferias sem que mexamos um músculo de preocupação.
Enfim, precisamos de mais pessoas como esses. Pois, como já disse aqui, os bons do século 20 estão morrendo antes que realmente tenhamos entendido suas mensagens.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.