Governo Temer lança estratégia para indígenas: "Brasil, ame-o ou deixe-o"
Leonardo Sakamoto
06/07/2016 13h59
O general da reserva Sebastião Roberto Peternelli Júnior, que já defendeu publicamente o golpe de 1964, foi convidado pelo Partido Social Cristão para presidir a Funai. Ele afirmou que aceitava o convite, como apontou Rubens Valente, na Folha de S.Paulo. O PSC conta com nomes como Jair Bolsonaro (RJ) e Marco Feliciano (SP) entre seus quadros. A indicação provocou revolta entre populações indígenas e organizações voltadas à proteção dos direitos socioambientais.
Por conta de toda a repercussão negativa da indicação, o governo interino voltou atrás. O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, afirmou que o general não assumirá a presidência da Funai.
Convenhamos que colocar um militar na chefia da Funai está em total consonância com a política que o governo interino vem apontando para o desenvolvimento do país. A de que tudo será feito, absolutamente tudo, pelo crescimento econômico. Inclusive passar por cima de direitos dos mais pobres e de minorias.
Particularmente, acreditava que o governo Dilma já tinha sido o fundo do poço nesse quesito, com seu modelo de desenvolvimento predatório e excludente, que constrói grandes hidrelétricas expulsando gente e destruindo o meio ambiente, beneficiando empreiteiras que financiam campanhas eleitorais. Modelo que em pouco diferenciava daquele adotado pelos verde-oliva durante a Gloriosa.
Daí a gente descobre que no fundo do poço tem um alçapão. Pois convidar um general conservador que defendeu a ditadura para comandar a Funai não é apenas um alçapão que nos leva a um mundo novo de possibilidades. Mas também um grande tapa na cara da história.
Muita coisa mudou desde que os verde-oliva deixaram o poder, naquela abertura "lenta, gradual e segura", mas mantivemos modelos de desenvolvimento que dariam orgulho aos maiores planejadores daquele período: de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa, destruindo qualquer um.
A verdade inconveniente é que o "inimigo externo" também somos nós. Vários massacres de indígenas que ocorreram em nome do "interesse nacional" tornaram nossa vida mais fácil, possibilitando a manutenção de nosso American Way of Life.
Durante a construção da BR-174, que cortou o território Waimiri Atroari, entre Roraima e o Amazonas, o exército brasileiro controlado pela Gloriosa quase levou à extinção o povo kinja na década de 70. Há relatos de bombas lançadas por aeronaves na população.
Outros relatos apontam o massacre de indígenas no Mato Grosso na década de 60, quando fazendeiros, com o apoio de representantes do Estado, teriam lançados objetos contaminados com doenças, como sarampo, nas aldeias indígenas.
Reestabelecida a democracia, casos assim continuaram porque o Estado brasileiro nunca mudou a estrutura que garantia isso. Por ocasião dos trabalhos da Comissão da Verdade, casos de exploração e violência contra indígenas pelos militares vieram a público, mas não provocaram cócegas no poder público.
Há denúncias de que pecuaristas, temendo que suas terras viessem a ser devolvidas aos indígenas isolados que nelas viviam no Sul de Rondônia, mandaram dar açúcar de presente a tribos. O que não avisou a eles é que o açúcar tinha sido temperado com veneno de rato. Isso sem contar as usinas em construção, como Belo Monte, que empurram, com promessas, os indígenas para fora de suas terras.
Querem saber de uma coisa? Os textos que publico sobre indígenas são os menos lidos entre todos os temas. Mesmo que tragam as maiores desgraças, como o assassinato de jovens por fazendeiros, que ocupam irregularmente territórios de comunidades tradicionais. A verdade é que boa parte da sociedade, conservadora ou progressista, está pouco se lixando para o assunto. O máximo que conseguem é achar fofo seus filhos se pintarem de tinta guache na festinha do Dia do Índio da escola.
Aqueles que ficaram pelo caminho na luta pela redemocratização não morreram apenas por direitos civis e políticos – mas também pelos sociais, econômicos, culturais e ambientais, ou seja, por uma outra forma de ver e fazer o Brasil. Não era apenas para poder se expressar e votar, mas para que aqueles que eram vítimas de arbitrariedades e tinham suas aldeias queimadas em nome do progresso, desse que é "um país que vai pra frente", pudessem ter uma alternativa além do "ame-o ou deixe-o".
Qual a diferença de uma época em que abríamos grandes estradas sobre terras indígenas para o momento em que construímos gigantescas hidrelétricas em outras reservas, xingando os opositores de "arautos do atraso" ou acusando-os de fazer o jogo do "inimigo externo"?
Com a política de Dilma, era quase nada.
Com a política de Michel Temer, que chegou a convidar um general para o comando da Funai, creio que nenhuma.
Atualizado às 18h30 para inclusão da informação sobre a desistência do governo interino em indicar o general após a repercussão negativa.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.