Justiça reafirma que não é crime divulgar resgates de trabalho escravo
Leonardo Sakamoto
06/07/2016 08h46
A 2a Turma do Colégio Recursal Criminal de São Paulo, em julgamento realizado nesta terça (5), decidiu, por unanimidade, que não cometi crime de difamação por ter disponibilizado, neste blog, um link para uma lista com o nome de empresas que foram alvo de operações de resgate de trabalhadores em condições análogas às de escravo pelo governo federal. Uma informação de natureza pública, fornecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, via Lei de Acesso à Informação, que não veio acompanhada de comentários ou juízos de valor. Ela reafirmou a decisão proferida em primeira instância.
Para os magistrados, não só não cometi crime algum como estava no meu direito de divulgar informações públicas e de interesse público: "Não se verifica, em tal manifestação, abuso da liberdade de informação e de crítica, tendo o apelado, apenas, divulgado dados públicos obtidos junto ao Ministério do Trabalho, não acobertados por qualquer sigilo. Agiu, assim, amparado pela garantia constitucional assegurada no art. 5o, IV, da Constituição Federal, nos limites de sua profissão de jornalista", afirmou a juíza relatora do caso, Maria Carolina Bertoldo.
O processo movido pela empresa Pinuscam – Indústria e Comércio de Madeira Ltda já havia sido arquivado pelo juiz Ulisses Augusto Pascolati Júnior, da Vara do Juizado Especial Criminal do Foro Central Criminal de São Paulo. "A simples narrativa dos fatos que, nesse caso, tinha o intuito de informar a sociedade (grifo do juiz), a partir da divulgação de dados públicos, não basta para a configuração do crime de difamação", afirmou. A empresa recorreu da decisão e a 2a Turma Recursal reafirmou que não houve crime.
Antes desse processo, a empresa já havia entrado com uma ação civil, pedindo indenização em dinheiro pelo mesmo motivo – também negado pela Justiça. Bem como uma liminar que pedia a censura da informação em questão.
A decisão em segunda instância é importante não apenas para garantir que este jornalista não seja condenado à cadeia por divulgar informação pública de interesse público, mas também para fortalecer o uso da Lei de Acesso à Informação como instrumento do trabalho jornalístico.
De acordo com Eloísa Machado, professora de Direito da FGV Direito SP e advogada do caso, "a decisão representa um importante precedente para o direito de informar, fortalecido pela Lei de Acesso à Informação".
Entenda o caso – A ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho resultou no resgate de 15 trabalhadores de condições análogas às de escravo, em Tunas do Paraná (PR), em 2012.
Solicitei, com base na Lei de Acesso à Informação, e através da ONG Repórter Brasil, que o Ministério do Trabalho e Emprego fornecesse os dados dos empregadores autuados em decorrência de caracterização de trabalho análogo ao de escravo e que tiveram decisão administrativa final entre dezembro de 2012 e dezembro de 2014. O extrato foi recebido em março e divulgado no blog.
Qual a razão desse pedido? Uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal, em dezembro de 2014 impediu o governo federal de divulgar novas atualizações do cadastro de empregadores flagrados com mão de obra escrava, a chamada "lista suja", que esteve público entre 2003 e 2014.
Os nomes permaneciam na "lista suja" por, pelo menos, dois anos, período durante o qual o empregador deveria fazer as correções necessárias para que o problema não voltasse a acontecer e quitasse as pendências com o poder público. O cadastro é tido como referência de política pelas Nações Unidas.
Considerando que a "lista suja" nada mais era do que uma relação dos casos em que o poder público caracterizou trabalho análogo ao de escravo e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias; e que a sociedade tem o direito de conhecer os atos do poder público, solicitei, em conjunto com a Repórter Brasil, com base nos artigos 10, 11 e 12 da Lei de Acesso à Informação (12.527/2011) – que obriga o governo a fornecer informações públicas – e no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 uma relação que, na prática, teria um conteúdo o mais próximo e atualizado o possível do que seria a "lista suja".
Não seria possível pedir o conteúdo exato porque a decisão do ministro Ricardo Lewandowski, atendendo à Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Abrainc (ADI 5209), exigiu a suspensão da eficácia das portarias que criaram e mantêm a lista. Mas a decisão não apagou os registros de resgates do Ministério do Trabalho e Emprego.
A ministra Cármen Lúcia revogou a medida cautelar que impedia a divulgação da lista no dia 16 de maio deste ano, mas como o Ministério do Trabalho ainda não publicou uma nova relação e não possui data para isso, continuo solicitando novas Listas de Transparências via LAI para que a sociedade não fique sem informação a respeito do tema.
Direito à informação – De acordo com o juiz Ulisses Augusto Pascolati Júnior, "houve tão somente a disponibilização de dados e informações públicas, com cunho informativo. Não há, em toda a matéria, qualquer juízo de valor ou utilização de termos ofensivos em relação às empresas incluídas na lista que, ressalta-se, foi fornecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego".
De acordo com o magistrado, "assim, no caso, agiu o querelado nos limites de sua profissão, baseando sua matéria jornalística nas informações recebidas, atuando, em verdade, nos limites dos fatos narrados, não julgando ou criticando, de modo a não existir qualquer ato ilícito penal de sua parte".
"Tratou-se, de fato, do exercício regular do direito de informar. A liberdade de imprensa, enquanto extensão das liberdades de comunicação e de manifestação do pensamento, compreende prerrogativas inerentes como o direito de informar, o direito de buscar a informação, o direito de opinar e o direito de criticar e estas prerrogativas asseguram a livre circulação das ideias o que garantem, por conseguinte, uma sociedade plural e crítica", conclui o juiz.
Essa sentença foi mantida, em sua íntegra, pelos juízes da 2ª Turma do Colégio Recursal Criminal de São Paulo.
A sociedade brasileira depende de informações oficiais e seguras sobre as atividades do Ministério do Trabalho e do Emprego na fiscalização e combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Informação livre é fundamental para que as empresas e outras instituições desenvolvam suas políticas de gerenciamento de riscos e de responsabilidade social corporativa.
Tanto naquela época quanto agora estou sendo representado nesses casos pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (Cadhu), criado por Eloísa Machado, grupo de advogados que têm realizado um trabalho fundamental na defesa da dignidade no Brasil.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.