Não fale de crise, trabalhe
Leonardo Sakamoto
14/07/2016 15h35
Num boteco de São Paulo, a TV ligada trazia um consultor de economia dando dicas para resolver o atoleiro das dívidas. Em torno do aparelho velho, formou-se uma rodinha.
Enquanto isso, um senhor curtido pela idade, trajando boné de um antigo candidato que, hoje, faz campanha em outro plano espiritual, assumiu o papel de comentarista, mumunhando entre os dentes.
Consultor: "Verifique a possibilidade de novas linhas de crédito."
Voz da experiência: Se o gerente aceitar me dar mais um empréstimo, é um idiota.
"Depois verifique a possibilidade de vender bens."
Geladeira é velha, o fogão é velho, o sofá é velho. Se vender a TV, não posso assistir o que você tá falando.
"Não conseguindo, cheque com os parentes."
O meu cunhado nem visita mais a gente por conta do dinheiro que peguei dele e não paguei. Com que cara vou pedir outro? Se ele aceitar, é um idiota como o gerente.
"Empréstimo tendo o 13o como garantia é uma saída."
Primeiro, um emprego formal para ter 13o seria bom.
Um outro homem, de bigode desbotado, se vira e reclama do mau humor do colega. Fala algo como "não fale de crise, trabalhe" – frase de caminhoneiro que ninguém em sã consciência teria coragem de usar publicamente, a menos que quisesse passar vergonha e mostrar que sua escolha para qualquer cargo público foi uma péssima ideia.
Ele prontamente retruca.
Eu sei que o homem tá com boa vontade, mas essas dicas não servem pra nós, não. Aqui o problema não é que a gente gasta demais. É que ganha de menos. Aí, não tem jeito.
E depois de um longo gole de média e de afastar o gato malhado que procurava algo que despencasse do balcão, desabafa:
Quero é alguém que explique se dívida passa de pai pra filho quando o pai morre. Se não passar, já tá bom demais.
Moral da história: Não é que o jornalismo da TV estava desconectado da realidade. A realidade é maior, muito maior, que o jornalismo.
Observação: Cuidado, contém sarcasmo.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.