Ao invés de pichar, que tal remover as homenagens aos bandeirantes em SP?
Leonardo Sakamoto
30/09/2016 11h32
O Monumento às Bandeiras e a estátua do bandeirante Borba Gato apareceram cobertas de tintas coloridas na manhã, desta sexta (30), em São Paulo.
Isso acontece depois que uma dobradinha entre os candidatos João Dória e Marta Suplicy, no debate eleitoral realizado na noite desta quinta, elencar as pichações como um dos maiores problemas da capital paulista. Talvez comparável apenas à saúde, à mobilidade e à segurança pública.
Particularmente, acho que essa forma de intervenção urbana tem um custo alto uma vez que equipes de limpeza pública foram deslocadas para remover as tintas dos monumentos – o que significa que deixaram de limpar algum outro lugar.
Mas, ao mesmo tempo, nunca entendi como um povo que se diz tão consciente de si mesmo não se juntou para repensar as homenagens dadas aos açougueiros bandeirantes em locais de grande visibilidade. E, diante da percepção do que eles realmente significaram, talvez decidir por removê-las.
Ah, mas é de Vitor Brecheret! – clamam alguns. Podia ter sido feita com o dedo de Deus à sua imagem e semelhança. Dá no mesmo.
Afinal, a arte sempre nem sempre é usada para despertar o que temos de melhor como seres humanos. Pelo contrário, pode ser usada que a história seja passada adiante de forma acrítica, contribuindo com a doutrinação.
A Prefeitura de São Paulo rebatizou o Minhocão, antigo Elevado Costa e Silva, para Elevado Presidente João Goulart, trocando o nome de um ditador militar por aquele que, eleito pelo voto popular, foi deposto no golpe de 1964. O simbolismo disso é extremamente relevante e a mudança, de baixo custo, ajuda a transformar o imaginário popular sobre aqueles que envergonharam a história do país.
Mas ainda falta irmos um pouco mais longe no tempo. Até a nossa própria fundação.
Bandeirantes. A gurizada que é nome de avenida, escola, praça, escultura, Palácio de Governo, estrada. Nossos heróis são Domingos Jorge Velho, Antônio Raposo Tavares, Fernão Dias Paes Leme, Manuel Preto, Bartolomeu Bueno, Borba Gato que roubaram, mataram, escravizaram e ampliaram nossas fronteiras como consequência não de algum princípio mais alto, mas da ganância.
O fato da elite de São Paulo tê-los, em determinado momento, escolhido como heróis diz muito sobre o espírito do Estado. E o fato de muita gente continuar defendendo que seus métodos foram necessários para que o Brasil fosse "grande" diz muito sobre o que somos nós, um povo que acha que o fim justifica os meios.
Diante desse cenário, não me admira, por exemplo, que parte da população encare a tortura como método válido de investigação policial.
Para parte da população paulista, por exemplo, a Cracolândia e ocupações, como o Pinheirinho, eram um "mal a ser extirpado" em nome do progresso. E ir à Amazônia e colocar abaixo floresta, trabalhadores, ribeirinhos, índios, o que estiver na frente do "destino glorioso" em nome de mais energia elétrica, não é crime, mas o cumprimento da profecia do padre José de Anchieta.
Na minha opinião, um povo não precisa de heróis (qualquer família que sobrevive com um salário mínimo poderia se candidatar ao Panteão da Pátria). Mas se quiserem (forçadamente) escolher, poderíamos começar por aqueles que são bons exemplos a seguir. Alguns escritores e lideranças sociais cumpririam esse papel. Que tal Vladimir Herzog, morto pela ditadura e que virou símbolo da luta contra a Gloriosa? Os abolicionistas? As feministas históricas?
O "paulistanismo", o nacionalismo paulista, funciona como uma espécie de seita radical para os seus adeptos. Mesmo as pessoas mais calmas viram feras, libertando a fúria bandeirante que parecia reprimida dentro do peito quando se veem diante de críticas à ideia de destruir antigos conceitos para dar lugar a uma nova percepção sobre sua própria história.
Não estou defendendo derrubar o museu Casa do Bandeirante, que existe em São Paulo para nos lembrar do cotidiano daquele tempo. Seria o mesmo que querer a demolição do Coliseu, usado para sangrar pessoas pelo deleite de outras e em benefício da política. Os monumentos pichados não são lembrança daquele momento histórico, mas símbolos construídos para fortalecer uma narrativa histórica por um grupo social que ainda hoje está no poder. Ou seja, não são lembranças de um passado que não existe mais, mas parte de um presente que segue formando, com toda força, um conceito de cidade e de povo. Sem que esse povo se importe com isso.
Isso pode parecer bobo, mas diz respeito à construção e reconstrução de nossa identidade e os símbolos que foram escolhidos ao longo do tempo para tanto e reafirmados pelos administradores de plantão. Ou seja, é fundamental e terá que ser feito mais cedo ou mais tarde, com ou sem tinta.
Em tempo: Sem contar que a estátua do Borba Gato é a coisa mais feia do mundo #prontofalei
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.