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Quando o céu é usado para a reafirmação cultural dos povos indígenas

Leonardo Sakamoto

09/10/2016 22h15

Por Meghie Rodrigues e Patrícia Spinelli(*), especial para o blog

A ciência ocidental como a conhecemos é vista – e não raramente, age – como um rolo compressor de culturas e saberes que escapam do crivo de seu método científico. Mas nem sempre isso foi (e muito menos precisa) ser assim.

A astronomia, por exemplo, serviu (e muito) como ferramenta para marcação do tempo desde que nos entendemos como coletividade. Ela também é pano de fundo para histórias sobre a criação do mundo. E, em culturas como a dos Suruí em Rondônia, também carrega preceitos morais e culturais aos mais novos.

O céu observado por Galileu e Edwin Hubble ontem é o mesmo que o visto por tikunas, ashaninkas e kaxinawás de hoje. No entanto, contam histórias diferentes: Galileu viu luas em Júpiter em um universo em constante movimento.

Universo muito mais agitado que a ideia de Aristóteles, dominante até então, de que para além da Lua tudo era perfeito e sem rugas nem colisões. As crateras lunares que o italiano descreveu em seu "Mensageiro das Estrelas" eram uma prova de que existia um mundo novo em convulsão muito acima das nossas cabeças.

Para os tupi-guarani, estas crateras são um lembrete de que o incesto deve ser evitado. Vistos daqui de baixo, os vales e montanhas da Lua parecem manchas – que são, em um dos mitos fundadores guarani, marcas de resina que Sol deixou sobre o rosto do seu irmão, Lua, para descobrir quem a violentava enquanto dormia.

Todas as noites, Sol era violentada por alguém que entrava em seu quarto sem fazer barulho. Numa ocasião, resolveu descobrir quem era. Sujou suas mãos de urucum e esperou o violador aparecer. Quando apareceu, Sol passou as mãos sujas na face dele para que pudesse reconhecê-lo à luz do dia. Como a mancha de urucum não saía, o rosto de Lua, irmão de Sol, ficou manchado – e as manchas estão lá até hoje.

Além de sua beleza, mitos como este guardam uma memória histórica, cultural, política e estética que vem se perdendo sob uma estrutura social e educacional homegeneizante.

Escolas indígenas, ao terem que seguir o mesmo programa das escolas regulares e se basear nos parâmetros curriculares nacionais, frequentemente geram conflitos de auto-reconhecimento por parte de crianças e jovens de povos tradicionais. Ainda é difícil mensurar os efeitos que esse não-reconhecimento tem sobre culturas indígenas diversas, mas muitos pesquisadores da área de educação, antropologia e linguística vêm tentando entender como essa relação se dá.

Será que o sufocamento das culturas por parte do conhecimento ocidental é um caminho sem volta? Talvez não precise ser – e há gente trabalhando nisso. Em uma visita que fizemos aos Suruí, em 2014, a observação noturna do céu se transformou numa aula para nós, astrônomos profissionais que estávamos lá. Quem apontou o laser verde para o céu foi o líder da comunidade Suruí, enquanto pudemos aprender sobre os diversos significados que os astros têm para eles.

Nosso grupo se dedica à divulgação de astronomia para crianças e jovens fora dos grandes centros urbanos. Formado por astrônomos, educadores e comunicadores das Américas e da Europa, ele vem desenvolvendo atividades que se utilizam da astronomia para promover troca de conhecimento e experiência.

No mapa de locais visitados estão Sena Madureira e Cruzeiro do Sul, no Acre, Cobija, na Bolívia, e Kampala e Mbale, em Uganda – além de comunidades na Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Índia e Peru. Em novembro, o GalileoMobile irá visitar a cidade de Cacoal e arredores para promover a astronomia em escolas regulares e indígenas do povo Paiter Suruí.

A expectativa é promover atividades nas escolas que levem em conta as diferentes características das comunidades, sempre em diálogo com os saberes tradicionais. E fomentar a discussão, sobretudo com os anciãos do povo, para que o grupo e os mais jovens possam aprender a astronomia como como é repassada na tradição local.

Saiba mais sobre o GalileoMobile, clique aqui.

(*) Meghie Rodrigues é jornalista que cobre a área da ciência e integrante do grupo de pesquisa do Observatório do Amanhã; Patrícia Spinelli é pesquisadora em astronomia e educação não formal do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Ambas integramos a equipe do GalileoMob.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto