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Ministro da Educação diz que problema não é dinheiro. Claro! E vacas voam

Leonardo Sakamoto

11/10/2016 06h26

O ministro da Educação afirmou que "não é a falta de dinheiro", mas de "engajamento da sociedade" o motivo da desigualmente no sistema educacional. A declaração de Mendonça Filho foi dada durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, na noite de segunda (10).

Enquanto isso, a Câmara dos Deputados aprovava a PEC 241, alterando a Constituição para impor um teto ao crescimento nos gastos públicos. Com isso, o montante que o governo pode gastar será reajustado pela inflação do ano anterior, o que significa que os recursos para implantar novas ações serão limitados. Nesse contexto, a educação pública será uma das principais prejudicadas.

Já havia dito aqui que detesto esse discurso de que é possível uma educação de qualidade com poucos recursos, usando apenas gestão, ajuda da sociedade e imaginação.

Aulas tipo MacGyver, sabe? "Agora eu pego essa ripa de madeira de demolição, junto com esses potes de azeitona usados, coloco esses dois pregadores de roupa, mais essa corda de sisal… Pronto! Eis um laboratório para o ensino de química para o ensino médio!"

É possível ter boas aula sem estrutura? Claro. Há professores que viajam o mundo com seus alunos embaixo da copa de uma mangueira, com uma lousa e pouco giz. Por vezes, isso faz parte do processo pedagógico.

Em outras, contudo, é o que foi possível. Nesse caso, transformar o jeitinho provisório em padrão consolidado é o que deve ocorrer a partir de 2018, quando o reajuste de recursos para educação passa a ser apenas a inflação do ano anterior.

E, como sempre é bom lembrar, quem gosta da estética da miséria é intelectual ou político, porque são preferíveis escolas que contem com um mínimo de estrutura. Para conectar o aluno ao conhecimento. Para guiá-lo além dos limites de sua comunidade.

"Ah, mas Sakamoto, seu chato! Eu achei linda a história da Ritinha, do Povoado Botas de Judas, que passa a madrugada encadernando sacos de papel de pão e apontando lascas de carvão, que servirão de lápis, para seus alunos da manhã seguinte. Ela sozinha dá aula para 176 pessoas de uma vez só, do primeiro ao nono ano, e perdeu peso porque passa seu almoço para o Joãozinho, um dos alunos mais necessitados. Ritinha, deu um depoimento emocionante ao Fantástico, dia desses, dizendo que, apesar da parca luz de candeeiro de óleo de rato estar acabando com sua visão, ela romperá quantas madrugadas for necessário porque acredita que cada um da sociedade deve fazer sua parte."

Para quem não se lembra, Joãozinho é velho personagem fictício usado por este blog para explicar os absurdos na educação.

Ele comia biscoitos de esterco com insetos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (às vezes, contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada com sentimento de culpa ou feeling para ganho de imagem institucional), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Venceu na vida sem a ajuda de ninguém e, hoje, é presidente de uma multinacional.

Ritinha simboliza a construção de um discurso que joga nas costas do professor a responsabilidade pelo sucesso ou o fracasso das políticas públicas de educação. Esqueçam a redução no orçamento da educação para pagamento dos juros da dívida, esqueçam os desvios nos recursos da merenda pela corrupção, a incapacidade administrativa e gerencial, o sucateamento e a falta de formação dos profissionais, os salários vergonhosamente pequenos e planos de carreira risíveis, a ausência de infraestrutura, de material didático, de segurança para se trabalhar.

Ritinha é, para muita gente, um problema e a sua própria solução.

Ao mesmo tempo, Joãozinho simboliza aquele papo meritocrático do self-made man, bonito, mas vazio, de que os alunos podem conseguir vencer, com esforço individual e apesar de toda adversidade, "ser alguém na vida". A exibição repetida das vitórias de alguns poucos Joãozinhos, que povoam os sonhos dos liberais festivos, passa uma mensagem do tipo "se não consegue ser como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade e de um bom professor, você é um verme nojento que merece nosso desprezo". Mesmo que histórias como essas sejam um ponto fora da curva e não o padrão. Daí para tornar o sistema educacional como um todo algo cada vez mais acessório é um passo.

Joãozinho é, para muita gente, um problema e a sua própria solução.

Sabe o que dá desgosto? Saber que parte daqueles que foram às ruas, no último ano, segurando suas plaquinhas como "Por mais educação", "Um país sem educação não tem solução" e "Anauê! Quero Educação para Você", não acredita que a garantia da dignidade do profissional da educação, o que incluiria salários altos, tenha a ver com a melhoria da sociedade. E repetem o mesmo discurso do ministro da Educação: uma educação de qualidade não passa por pesados investimentos novos, mas por sinergia e boa vontade.

Muita gente ergue plaquinhas porque esses mantras são superficiais. É bonito pedir educação para todos e todas. Mas a mudança real de modelo que isso significa na prática fere os valores defendidos por quem almeja um Estado mínimo. Educação de qualidade, desde que você trabalhe e pague por ela.

Muitos desses também repetem bobagens como "a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou". Pois acham que basta trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço. Acham que todas as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação. Não se perguntam quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica.

Qual educação é a saída? Aquela defendida pelo pessoal de campanhas como "Amigos do Joãozinho"? Educar por educar, passar dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina e ponto final?

E como já disse aqui uma miríade de vezes, uma das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e contestadoras que podem colocar em risco a própria estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Educar pode significar libertar ou enquadrar. Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter?

Apesar da evolução dos últimos anos, parte dos jovens de escolas públicas têm entrado no ensino médio sabendo apenas ordenar e reconhecer letras, mas não redigir e interpretar textos. O governo Temer quer implantar uma reforma no ensino médio de forma autoritária, baixada via Medida Provisória, sem convidar a sociedade para discutir e chegar a ações que sejam possíveis e desejáveis. Contraditoriamente, ao mesmo tempo, diz que o engajamento da sociedade na questão é fundamental. Não, o governo não está louco. Ele usa um discurso bonito de participação popular apenas na teoria, para parecer bonito na TV e junto ao eleitor.

Uma educação sem grandes investimentos para garantir um mínimo de dignidade, de baixa qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das demandas profissionalizantes e com professores mal tratados pode mudar a vida de um povo?

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto