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Alguém avisa ao Temer que não tenho roupa para viver de novo nos anos 80

Leonardo Sakamoto

13/10/2016 10h57

O governo Michel Temer está empurrando a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 241 a fim de limitar investimentos públicos, piorando a vida de quem depende de educação e saúde públicas. Mas também uma Reforma da Previdência para impor uma idade mínima de 65 para a aposentadoria, estendendo o inferno de quem corta cana, produz carvão e carrega saco de cimento. E uma Reforma Trabalhista para reduzir direitos garantidos ao longo de décadas de lutas, transformando a carteira de trabalho em confete.

É… A vida não tá fácil, né, colega? Se ao menos o seu time fosse como o meu que não vê ninguém à sua frente na tabela do Brasileirão, teria o alento do Pão e Circo para esquecer um pouco a dureza das coisas. Imagina como está a vida de quem torce para o América, o Santa, o Figueirense e o Inter.

Michel Temer e seu ministro da Fazenda dizem que se esse pacote de desgraças não for aprovado do jeito deles, o Brasil quebra.

Empresários dizem que se isso não for aprovado do jeito que o governo propôs, o Brasil quebra.

Todo dia tem algum analista na TV dizendo que isso não for aprovado do jeito que o governo exige, o Brasil quebra.

O problema é a perspectiva, sempre. Pois, do ponto de vista dos mais pobres, o Brasil vai quebrar exatamente se isso tudo passar e o Estado não for capaz de garantir um mínimo de qualidade de vida a milhões de pessoas que já vivem na merda, preocupando-se apenas com fazer caixa para o pagamento dos juros da dívida pública.

Ao invés de promover um grande debate nacional sobre quais devem ser as prioridade do Estado e como devemos resolver os nossos problemas estruturais (o que seria de se esperar de um presidente-tampão com um plano de governo que não foi – e nunca seria – eleito democraticamente), Temer prefere reduzir o tamanho do Estado num curto espaço de tempo.

Uma espécie de Juscelino Kubitschek às avessas, engatando a marcha à ré de 30 anos em três.

Para isso, engajou-se em uma blitzkrieg, ou "guerra-relâmpago", feito a Alemanha na Segunda Grande Guerra, utilizando ataques rápidos, brutais e de surpresa em vários fronts para evitar que a sociedade civil tenha tempo de se reorganizar. De forma atabalhoada, é claro, sem a mesma competência do Terceiro Reich e, claramente, longe de ter a mesma aptidão para comunicação.

No final das contas, é o Estado mínimo que está sendo implantado a toque de caixa. Fernando Henrique deve ter agradecido a Michel Temer, no jantar que tiveram nesta semana, por estar terminando de aplicar o receituário do Consenso de Washington, o que nem ele conseguiu fazer.

Qualquer morsa que acompanhe o dia a dia da Previdência Social e da CLT sabe que o país precisa de discussão para atualizar essas políticas. Tenho discutido isso aqui no blog há muito tempo. Por exemplo, o Brasil está mais velho e isso deve ser levado em consideração para os que, agora, ingressam no mercado de trabalho. Mas aumentar a idade mínima pura e simplesmente, ignorando que há trabalhadores braçais que começaram a trabalhar muito cedo e, exauridos de sua força, nem bem chegam vivos aos 65 anos, é delinquência social.

Delinquência social implementada via chantagem de governo.

O governo do PT fez bastante isso também na área ambiental. Por exemplo, em 2007, o então ministro das Minas e Energia, Silas Rondeau, disse que ou o licenciamento ambiental das hidrelétricas do rio Madeira (Santo Antônio e Jirau) saía ou o governo começaria a procurar outras fontes de energia sujas como a térmica ou nuclear.

O interessante é que ele não escolheu a energia eólica, a solar ou a proveniente da biomassa como opções, o que mostra o padrão de desenvolvimento predatório que reinou nos governos Lula e Dilma. Mas também mostra como são estruturadas essas chantagem de "ou isso, ou aquilo", no qual escolhe-se um futuro sombrio feito uma maldição que irá se concretizar se não aceitarmos a luz entregue pelos iluminados governantes.

Na mesma linha, mas mexendo com temas muito mais estruturais, Michel Temer chega com seu carrinho de picolé e diz que só há dois sabores a escolher: "gordura velha" e "sovaco cansado". Um maniqueísmo e uma dualidade rasos travestidos de "única chance de salvação" que pode caber na explicação simplista e pomposa dada por representantes do governo, mas não na realidade.

Por que Michel Temer e Henrique Meirelles não vem a público dizer que "ou a Previdência Social é reformulada ou então teremos que fazer uma reforma tributária democrática para que os muito ricos passem a pagar, proporcionalmente, tanto imposto quanto a classe média e os mais pobres já pagam".

Por aqui, a tributação recai mais sobre bens e serviços, atingindo os mais pobres e não sobre renda e patrimônio, o que atingiria os mais ricos – dividendos recebidos de empresas, por exemplo, não são taxados por aqui. Até porque, como sabemos, tanto patrimônio quanto patos amarelos são mais sagrados que a vida. E não sou eu quem diz isso, mas o Centro Internacional de Políticas para Crescimento Inclusivo ligado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Sem contar que já passou da hora de desvincular do cálculo do "rombo da Previdência" o montante destinado à aposentadoria rural. Isso sempre foi programa social, o mais importante de distribuição de renda até a chegada do Bolsa Família. E como tal deveria ser encarado.

Também nunca ouvi Michel Temer dizer "ou cortamos recursos para educação e saúde ou implantamos impostos sobre grandes fortunas, grandes heranças e aplicamos uma alíquota nova no imposto de renda, de 40%, sobre a alta renda dos muito abastados e agimos, finalmente, cobrando impostos sonegados".

A beleza de uma democracia é que, nela, os caminhos deveriam ser discutidos abertamente e as decisões tomadas coletivamente. E se há um buraco a ser coberto, que ele seja socializado – com os mais vulneráveis pagando menos o pato do que os mais protegidos.

Como não há dinheiro em caixa, está sendo dado ao povo uma escolha: ou aceita a revisão de seus direitos, diminuindo seu alcance e efetividade, ou fica sem nada. Isso pode ser tudo, mas está longe do que se espera de uma democracia.

Por fim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que a propriedade é um direito, o que concordo, mas que educação, saúde, cultura, moradia também são. Se a elite de um país pressiona para que apenas um direito seja respeitado  e o governo faz vistas grossas, cabe ao povo se rebelar contra a situação e tomar as rédeas do seu futuro.

O mais triste é constatar que parte da população abraçou esse discurso e atua, com unhas e dentes, como cães de guarda diante da possibilidade de contestar o status quo. Valores passados cuidadosamente e ao longo do tempo foram colando em nossos ossos e nos transformando em guerreiros da causa alheia.

Talvez porque comprou a promessa vazia do sistema de que sempre é possível alcançar a mesma riqueza através de trabalho árduo e vê nos mais ricos um exemplo a ser seguido. Talvez porque acreditam realmente que a meritocracia não é hereditária no Brasil.

Quem se insurge contra o que nos mantém acorrentados a uma vida de merda acaba ouvindo "Não reclame, trabalhe". Porque, afinal de contas, "só o trabalho liberta", como diria a porta dos campos de concentração.

Quem resolve se voltar contra injustiças e foge do comportamento aceitável vira um pária. Sem essa vigilância invisível feita pelos próprios controlados, é impossível uma classe econômica se manter no poder por tanto tempo e de forma aparentemente pacífica como ocorre por aqui.

Enfim, alguém avisa ao Temer que não tenho roupa para viver de novo nos anos 80, que é para onde ele está nos levando.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto