Eleições: Dizer que religião e política não se discutem é sinal de covardia
Leonardo Sakamoto
30/10/2016 09h03
Sabe aquele mantra de que "religião e política não se discutem"? Então, é cascata – e das mais grossas. Coisa de covarde.
Pois é exatamente ao não discutir esses dois assuntos fundamentais do cotidiano que sacerdotes e políticos ou sacerdotes-políticos ganham liberdade para fazerem o que quiserem da vida alheia.
Ancoradas em nossa resignação, pessoas tendem a ser eleitas para fazer rir indivíduos, empresas, organizações e religiões que os apoiam.
Sim, em última instância, somos nós os responsáveis por isso porque jabuti não sobe em poste sozinho.
Seja por ter votado neles (reproduzindo o que terceiros disseram sem a devida análise de quem são, o que defendem e com quem estão), seja por não ter votado neles mas também não tentado, ao menos, pautar a discussão sobre eles (quando temos certeza de que não farão um bom governo ou uma boa representação). Ou, pior: não ter se interessado em saber o que faz um prefeito – ou se as opções que estão aí cumprem esse papel.
De tanto falar "Nada Adianta", você tem tanta responsabilidade por fazer cumprir essa profecia quanto os representantes de poderes econômico, político e "sobrenatural" que fazem de tudo para que "Nada Adiante" mesmo.
Muita gente simplesmente repete mantras que lê nas redes sociais, ouve em bares ou vê na igreja e não para para pensar se concorda ou não realmente com aquilo. É um Fla-Flu, um nós contra eles cego, que utiliza técnica de desumanização, tornando o outro uma coisa sem sentimentos. Isso é muito útil durante momentos polarizados, com este, mas péssimo para o cotidiano.
Tudo isso já foi dito aqui. Inclusive que eu gosto do cinismo. Bem dosado, cria uma casca que nos protege da insana realidade. Mas sabe o que acontece quando você exagera e diz que não importa nada do que façamos, tudo vai continuar igual? As coisas continuam iguais.
Por fim, duas coisas. Primeiro: é extremamente salutar que todos os credos tenham liberdade de expressão e possam defender este ou aquele ponto de vista.
Mas o Estado brasileiro, laico, não pode se basear em argumentos religiosos para tomar decisões públicas. Já é um absurdo prédios públicos, como o plenário do STF, ostentarem crucifixos, agir em prol deles seriam a derrota da razão. "É cultural", justificam alguns. O argumento é risível, o mesmo dado por fazendeiros que superexploram trabalhadores, defendendo uma cultura construída e excludente.
A humanidade já deveria ter evoluído para deixar as cruzadas de lado, mas os ultraconservadores de várias denominações religiosas, que gritam mais alto que as alas progressistas, botam cada vez mais lenha na fogueira de sua guerra santa, em uma luta contra o ser humano.
Segundo: em momentos de esgarçamento da democracia, o desinteresse pela política pode não ser sinal de isenção ou cansaço, mas da covardia supracitada.
Caso tivéssemos essa necessária sensação de pertencimento da cidade em que vivemos, participaríamos realmente da vida política e perceberíamos o quão importante são dias como hoje em que decisões para as próximas décadas serão tomadas.
Mas a cidade, de fato, não nos pertence. Entregamos ela, há muito tempo, às indústrias de automóveis, às empreiteiras e às empresas de telefonia móvel, às igrejas, entre outras, que sabem do que a gente realmente precisa.
Se concorda com isso, compre todo dia e vote na data de hoje, mas de boca calada. E reze para que seus direitos e sua dignidade não desapareçam nos próximos quatro anos.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.