Antes do cartel e da corrupção, Belo Monte é um crime contra a vida
Leonardo Sakamoto
16/11/2016 23h44
A Andrade Gutierrez delatou ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica que um cartel foi montado para disputar as licitações de construção e de operação da usina hidrelétrica de Belo Monte. O Cade instalou, nesta quarta (16), um inquérito para apurar o esquema, que contaria com a participação da empreiteira junto com a Camargo Corrêa e a Odebrecht.
Muito antes das obras da usina hidrelétrica de Belo Monte começarem, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e entidades que congregam povos indígenas vieram a público alertar sobre a tragédia que seria essa construção.
E, por anos, mantiveram-se protestando, dentro e fora do Brasil, nas ruas, no Congresso, na Justiça, contando apenas com a ajuda do Ministério Público Federal do Pará e de alguns parlamentares que resistiam e defendiam os direitos humanos.
Ao mesmo tempo, eram olhados com desprezo por grande parte do governo federal e da oposição.
Pois os dois lados compartilham da mesma de desenvolvimento – visão que daria orgulho aos maiores planejadores da ditadura civil-militar – de que, para crescer rapidamente e atingir nosso ideal de nação, vale qualquer coisa, passando por cima de qualquer um.
Inclusive da qualidade de vida e da vida de comunidades na Amazônia em nome do conforto dos que moram na cidade grande.
Escrevi isso, em março, neste blog. Mas acho que é importante atualizar a discussão e trazê-la de volta.
A corrupção ou a formação de cartéis em obras rouba os cofres públicos de recursos que poderiam ser empregados em outras áreas, tanto para garantir qualidade de vida quanto para melhorar a infraestrutura para o crescimento econômico. O senso comum reclama que esse montante transferido ilegalmente para o bolso de alguns ou contas na Suíça poderia ser usado em educação, saúde, segurança, entre outras áreas carentes.
Mas sinto uma tristeza gigante ao ver que a maior parte das pessoas só fica revoltada com Belo Monte por conta de denúncias como essas.
E todo o impacto social e ambiental causado pela usina?
E as comunidades indígenas, de ribeirinhos e demais populações afetadas? E o meio ambiente irreversivelmente prejudicado?
O MPF-PA já denunciou que a implantação da usina constituiu uma ação etnocida do Estado brasileiro e das construtoras responsáveis, "evidenciada pela destruição da organização social, costumes, línguas e tradições dos grupos indígenas impactados".
E, me desculpe, não dá para dizer que a mídia brasileira, seja ela tradicional ou alternativa, não cobriu o caso. Ele foi extensamente coberto e os crimes cometidos eram noticiados quase que em tempo real.
Muita gente, contudo, tratava tudo aquilo como coisa de ambientalista maluco, como ongueiro desocupado, como esquerdista anacrônico.
Como boa parte das pessoas que habita a internet não lê nem rótulo do que compra no mercado, não espero que chequem o arquivo deste blog. Mas há 107 textos em que cito Belo Monte, sendo que 30 deles focam no assunto.
Publiquei sobre a libertação de escravas sexuais que abasteciam a obra pela polícia federal; sobre a morte de operários na obra e os protestos de trabalhadores por melhores condições; sobre como a obra queimava madeira legal e comprava madeira ilegal; sobre denúncias de espionagem envolvendo os construtores contra a sociedade civil; sobre as denúncias de perseguição de movimentos sociais por conta de críticas à obra; sobre as denúncias de indígenas por conta do impacto da obra no rio Xingu; sobre os impactos negativos nos moradores de Altamira; sobre as críticas do sistema interamericano de direitos humanos contra a obra; sobre a aprovação da obra a toque de caixa junto aos órgãos ambientais, sem ouvir decentemente as populações diretamente envolvidas, desrespeitando convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário; sobre como a população local estava sendo desprezada em todo esse processo em nome do conforto de nós, que vamos aproveitar da energia gerada.
Em todos, criticando o governo brasileiro pela obra ou por sua tosca defesa. Pois o governo mentiu descaradamente sobre o impacto e ficou por isso mesmo.
Cansamos de ouvir intelectuais dito progressistas e conservadores, autodenominados esclarecidos, fazendo coro com parte da Esplanada dos Ministérios e com parte do empresariado nacional e internacional, pedindo aos movimentos sociais que não deixassem que o meio ambiente ou que comunidades tradicionais fossem um entrave para o crescimento. Sempre que escutei isso procurei um buraco para me esconder de vergonha.
Desde a ditadura, somos obrigados a ouvir discursos de que a vida de algumas centenas de famílias camponesas, ribeirinhas, quilombolas ou indígenas não pode se sobrepujar ao "interesse nacional". Discursos que taxam de "sabotagem sob influência estrangeira" a atuação de movimentos e entidades sérias que atuam para que o "progresso" não trague o país.
Valeria a pena pararem para refletir e perceber que o que chamam de "interesse nacional" é, na verdade, o interesse de parte da nação. Como a implantação de usinas hidrelétricas em regiões de mineração para abastecer a siderurgia de exportação. Mas qual a diferença do Centro-Sul brasileiro pilhar a Amazônia e o Centro do mundo pilhar a Periferia?
Se o impacto na população do entorno não vale de nada, então por que não construímos uma usina nuclear onde estão hoje os armazéns gerais – antes que ele seja transferido ao Rodoanel e o terreno seja entregue à especulação imobiliária, claro.
O problema é que esse canto do cisne conquista os eleitores de grandes cidades, independentemente de sua orientação ideológica.
E a verdade é que a política de construção de hidrelétricas no Brasil é estruturada na base do medo. Não se investe o que se deveria na troca por geradores mais potentes e na extensão de linhas de transmissão para diminuir as perdas e interligar o sistema. Investe-se pouco em energias alternativas. Ignora-se em qualquer planejamento que a mudança climática afetou de forma definitiva nosso regime hídrico e, portanto, nossa capacidade de geração. E, quando a bomba estoura sob risco de apagão ou no aumento do custo da megawatt-hora, impõem-se uma chantagem barata: "Olha, vocês têm que escolher: ou sacrificamos algumas comunidades e ecossistemas ou não vai ter energia para vocês verem Big Brother na TV."
Em 2011, fui convidado a integrar, no papel de relator, uma comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), que verificou as violações aos direitos humanos no Pará. Visitamos a região de Belo Monte, ouvimos as populações impactadas pelo projeto.
Entre as recomendações do relatório que apresentei no ano seguinte, estavam ouvir as comunidades, cumprir as condicionantes ambientais e indígenas, apurar denúncias de intimidação, invasão de propriedades e indução de assinaturas de contratos. Infelizmente, o relatório não levou a nenhuma mudança concreta.
Pelo contrário, até trabalho escravo de adolescente em prostíbulo que atendia os empregados de Belo Monte (impacto que é previsto em qualquer obra desse tipo) ocorreu.
Mas quase ninguém se indignou. Pelo contrário, li textos de anônimos e conhecidos, durante os apagões de eletricidade, que pediam a operação imediata de Belo Monte e a conclusão de outras usinas, fazendo o que fosse necessário.
Desconfio que, depois que toda esta convulsão política passar, o povo da cidade grande vai, novamente, esquecer que a hidroeletricidade instalada, lá longe, existe.
Por enquanto, as obras de novas hidrelétricas no rio Tapajós estão suspensas. Há quem se engane, dizendo que foi uma vitória da razão. Quando o país voltar a crescer, veremos se a "razão" resiste aos ganhos trazidos a empresários e políticos trazidos por uma obra de tamanho monumental.
E seguiremos velando a morte das comunidades que são "pedras" no caminho do desenvolvimento, deixando a nossa luz de nossas casas acesas madrugada adentro.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.