Rodrigo Maia, para se reeleger, vai manter a vida de quem aborta um inferno
Leonardo Sakamoto
30/11/2016 20h43
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal considerou que, em um caso específico para a concessão de habeas corpus a médicos e funcionários de uma clínica que praticaria abortos ilegais, considerar crime a interrupção voluntária da gravidez até os três primeiros meses de gestação é inconstitucional.
Isso não descriminaliza todos os abortos para além da previsão legal (risco de vida para a mãe, estupro e anencefalia do feto). Não foi uma decisão do pleno do STF. Mas pode servir de referência a outros magistrado pelo país e é um sinal da mais alta corte.
Entre as justificativas apresentadas estão o direito da mulher a ter autonomia sobre o próprio corpo e o impacto maior nas mulheres pobres – que não têm acesso a clínicas particulares, mas dependem do SUS. Segundo a maioria da Primeira Turma, os direitos das mulheres não podem ser desconsiderados em nome da proteção do feto.
O presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ), que tenta se reeleger ao cargo, atendendo a pedidos da bancada do fundamentalismo religioso, afirmou que criará uma comissão para discutir uma proposta de emenda constitucional que proíba aborto no país.
A decisão da Primeira Turma do STF bastou para uma enxurrada de reclamações. Muitas delas dizendo que isso é contrário ao que a maioria do povo brasileiro deseja, sugerindo um plebiscito. É interessante como algumas pessoas que só toleram suor de povo quando dele precisam gostam de encher a boca para falar de plebiscito, exortando a possibilidade de trazer o povo para decidir uma questão.
Mas antes de falar de consultas populares, algumas observações.
Se essa comissão prosperar em seu intento, cada mulher morta em um aborto clandestino deveria entrar na conta de Rodrigo Maia e da bancada do fundamentalismo religioso. Esses corpos se acumulam pelo país diante da hipocrisia, do machismo, da intolerância, do falso moralismo, do controle de poder. Pois uma mulher que está desesperada para abortar vai abortar. Quer você, o Estado ou Deus gostem ou não. É claro que se o pleno do STF julgar a constitucionalidade de um caso concreto, isso poderia se sobrepor a uma futura lei ou emenda aprovada pelo Congresso. Ou seja, briga longa.
Deputados que bradam, indignados, mediante a tentativa do trâmite de leis ou decisões judiciais que ampliariam o direito ao aborto também são responsáveis por clínicas clandestinas de aborto. Pois são eles, com a negação do problema, que ajudam a criar a procura por esse serviço clandestino. Caso contrário, abortos seriam realizados em hospitais privados e públicos, até certo mês limite de gestação, com toda a segurança e sem medo.
Não há alguém, em sã consciência, que seja a favor do aborto. Ele é ruim, é um ato traumático para o corpo e a cabeça da mulher, tomada após uma reflexão sobre uma gravidez indesejada ou de risco. Ninguém fica feliz ao fazê-lo, mas faz quando não vê outra saída. O que se discute aqui é o direito ao aborto e não o aborto em si. Defender o direito ao aborto não é defender que toda gestação deva ser interrompida. E sim que as mulheres tenham a garantia de atendimento de qualidade e sem preconceito por parte do Estado se fizerem essa opção.
Enfim, é uma vergonha ainda considerarmos que a mulher não deve ter poder de decisão sobre a sua vida, que a sua autodeterminação e seu livre-arbítrio devem passar primeiro pelo crivo do poder público e ou de iluminados guardiões dos celeiros de almas, que decidirão quais os limites dessa liberdade dentro de parâmetros. Parâmetros estipulados historicamente por nós, homens.
Voltando ao tema da consulta popular. Vale lembrar que não são todos os temas que esses arautos da democracia propõem que sejam levados a escrutínio público, mas apenas aqueles que mais interessariam a determinados grupos no poder. Percebendo o apoio popular a determinada medida, empolgam-se para colocar em votação porque isso legitimaria a sua posição.
Mas, aí, temos um problema. Uma democracia verdadeira passa pelo respeito à vontade da maioria, sim, desde que garantindo a dignidade das minorias. Até porque, como sabemos, a maioria pode ser avassaladoramente violenta. Se não forem garantidos os direitos fundamentais das minorias (e quando digo "minoria", não estou falando de uma questão numérica mas, sim, do nível de direitos efetivados, o que faz das mulheres uma minoria no país), estaremos apenas criando mais uma ditadura.
O problema é que não há debate público decente sobre a questão, em que haja tempo e calma para colocar todos os pontos relacionados e tirar uma decisão. O que temos é gente gritando simplismos na internet, que não colaboram para evoluirmos no tema, mas sim para cristalizar preconceitos.
E é impossível tomar uma decisão racional sobre um assunto sem informação suficiente sobre ele. Por que ao comprar uma TV você pesquisa a fundo sobre as possibilidades e ao opinar sobre um assunto de vital importância para a sua vida simplesmente compra a posição corrente ou confia em um analista qualquer (inclusive este que vos escreve)?
É por isso que as ferramentas de participação popular devem incluir instâncias de debates e construção coletiva. A ideia é trazer a sociedade para a discussão e não transformá-la em ferramenta descartável para benefício de alguns. Nessas horas me pergunto se estamos prontos para baterias de consultas públicas. Porque ao jogar para a massa, a dignidade de um grupo pode ir para o chinelo.
Pois o processo é contaminado uma vez que não são minorias as responsáveis por fazerem as perguntas levadas à consulta, mas, pelo contrário, quem está no poder.
A ampliação do direito ao aborto, a manutenção da maioridade penal aos 18 anos, a garantia do direito à eutanásia, a descriminalização da maconha, se levadas a plebiscito, hoje, perderiam.
Mas, olhe que interessante: a taxação de grandes fortunas, o aumento na taxação de grandes heranças, a proibição de uma reforma previdenciária que suba a idade mínima de aposentadoria para 65 anos, a proibição de uma reforma trabalhista que retire direitos conquistados, entre outras, certamente ganhariam.
Agora me digam: qual grupo de perguntas estaria mais perto de ir a uma consulta? E por quê?
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.