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Antes de se vestir de gari, João Doria poderia se "vestir" de prefeito

Leonardo Sakamoto

02/01/2017 09h53

O prefeito João Dória vestiu-se com um uniforme de trabalho de gari, na manhã desta segunda (2), e fez uma "limpeza simbólica" na região da praça 14 Bis, no Centro de São Paulo, em companhia de seus secretários de governo. Simbólica, porque a praça já havia sido limpa antes de sua chegada. Ele diz que repetirá a ação semanalmente até o final de seu mandato.

Como peça de marketing, a fim de sensibilizar quem acredita no voluntarismo como método de fazer política, ou para chamar a atenção de nós, jornalistas, sedentos por notícias que quebrem a monotonia desesperadora do primeiro dia útil do ano, pode funcionar.

Segundo o prefeito, ele estava vestido de gari, "como gente simples que serve a cidade e que recebe seu salário para preservar e manter nossa cidade".

Mas o prefeito não precisa se vestir de gari para demonstrar que se preocupa com essa "gente simples", mas sim buscar formas de valorizar essa função, melhorando significativamente seus salários e condições de trabalho.

"Vamos ali dar uma demonstração de humildade, de igualdade e de capacidade de trabalho", também afirmou.

Ora, empatia, a capacidade de se colocar no lugar de outra pessoa e entender suas necessidades e seu ponto de vista, não surge quando você veste as mesmas roupas ou carrega os mesmos instrumentos de trabalho. Mas quando você é capaz de entender que essa pessoa tem o mesmo direito à dignidade que você e buscar formas de garantir isso. E, certamente, não é se vestindo como ela que isso acontece.

Isso sem falar que a praça escolhida, a 14 Bis, é abrigo de muitas pessoas em situação de rua. Portanto, melhor faria o prefeito se anunciasse ações ligadas à assistência social para esse público, como mudanças na utilização de albergues (indo ao encontro das demandas dessa população), ou mesmo um plano para a construção de moradias populares. Caso contrário, uma ação de limpeza num local como essa soa mais como higienismo do que como política pública.

Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

Por trabalhar com tudo aquilo que convencionamos chamar de lixo e descartamos para fora de nossas vidas, não raro os garis são tratados como o material que recolhem.

São pessoas invisíveis, cuja presença se faz notar apenas quando, cansados das condições de trabalho e dos salários, acabam se organizando e cruzando os braços. Daí, encurralados por montanhas de resíduos orgânicos, materiais recicláveis, ruas sujas e entulho, lembramos que o lixo não desaparece em um passe de mágica.

Se fossemos uma sociedade justa, profissionais responsáveis pela nossa qualidade de vida e que, ainda por cima, exercem funções insalubres, como limpar a porcaria dos outros, receberiam um salário condizente com a importância e os riscos da função.

Mas não. Pagamos relativamente pouco a eles. E os consideramos o restolho da sociedade. São o exemplo do que não deu certo.

"Olha, se não estudar, vai virar gari!"

"Você quer ser alguém na vida ou quer ser gari?"

"Ai que dó daquele rapaz… Tinha tanto potencial e virou gari."

Preconceito semelhante sofrem os catadores de materiais – responsáveis pelo milagre que faz do Brasil um dos países que mais reciclam no mundo.

Enquanto isso, fazemos patéticas comemorações quando ficamos sabendo de histórias de garis que se tornaram "alguém" através de muito esforço pessoal sem a "ajuda do Estado" e, hoje, possuem seu próprio negócio. O que, por contraposição, faz com que os demais sejam enquadrados como "indolentes" que não se dedicaram o suficiente para deixar essa estigmatizada profissão.

"Ah, não estudou…" Se eu acreditasse no inferno, mandaria a pessoa que diz essa frase para o lugar toda vez que escuto essa aberração.
Qual o objetivo disso? Afirmar que as pessoas que desempenham determinada função não estudaram? Com base em que?

Ou defender que as pessoas deveriam ser diferenciadas, a priori, pela quantidade de anos estudo em detrimento à função ou quantidade de horas que entregam à sociedade? Ou pela quantidade de dinheiro que conseguiram juntar?

De mal parecido, sofrem professores do ensino público que, apesar de muito estudarem, ganham um salário de titica para ajudar a construir o futuro do país. Além de serem tratados como lixo, apanhando da polícia, de alunos, de pais de alunos.

Quantos anos nossos políticos estudaram? E qual a porcentagem das promessas de campanha são devidamente cumpridas por eles? E agora me diga a porcentagem de cumprimento de planejamento de limpeza de um gari. Se ele não faz o serviço, pode ser demitido. Já no caso de prefeitos, o tempo de tolerância é de quatro anos. Estou atacando a democracia? Não, apenas conclamando ao bom senso.

O prefeito recém-empossado entende de publicidade, deve ter feito os cálculos do retorno de imagem decorrente da ação. Mas espero que gaste mais tempo buscando formas de valorizar os trabalhadores da limpeza pública em reuniões com suas equipes de orçamento, planejamento, de serviços urbanos, de direitos humanos, de comunicação, do que se dedicando a criar uma cena superficial que caberia perfeitamente no Trocando das Bolas, do antigo programa do Gugu.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto