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Pergunta para São Paulo, 463: A cidade trata como gente quem nada tem?

Leonardo Sakamoto

22/01/2017 21h09

O prefeito João Doria retirou o veto que proibia a remoção de cobertores, mantas, travesseiros, colchões, papelões de pessoas em situação de rua em São Paulo. A proibição havia sido adotada por Fernando Haddad após duras críticas sofridas por conta da remoção de "itens portáteis de sobrevivência" pela Guarda Civil Metropolitana durante o frio de junho do ano passado. Continua proibido tomar outros bens pessoais, como documentos e muletas, e instrumentos de trabalho, como carroças.

Apesar de excluir o veto que impedia a remoção de cobertores, João Doria prometeu – de acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, neste domingo (22) – que não irá retirar… cobertores. "É apenas para preservar o direito da GCM [Guarda Civil Metropolitana] para não haver a ilegalidade, mas jamais retirar pertences e cobertores." A declaração, que respondeu não-respondendo, mantém a pergunta: se não para é retirar, por que não manter a regra? A decisão é assinada também pelas secretarias de Prefeituras Regionais, Justiça e de Governo.

Postei vários textos criticando ações da administração Haddad quando essa não garantia a dignidade da população em situação de rua. O mesmo vale para a gestão Doria, portanto.

Então, para ajudar o novo prefeito em sua tarefa inglória de "higienizar" São Paulo para os "homens e mulheres de bem", atualizo meu guia de "Regras Fascistas para Convívio Social com a População em Situação de Rua – Um guia fácil para uma cidade melhor". Muitas das medidas já estão em curso há anos, outras – desconfio – que estejam sendo estudadas. E não vale apenas para a capital paulista, mas para cidades de todo esse nosso Brasil do ame-o ou deixe-o.

(A partir daqui, cuidado: texto com ironia, sarcasmo e cinismo.)

Por que o guia é útil? Porque uma dúvida segue aterrorizando muita gente na véspera de São Paulo completar 463 anos: Quem não tem nada deve ser tratado como gente mesmo assim?

Pessoa em situação de rua e arte urbana. Não raro, os primeiros inimigos de uma política higienista urbana. Foto: Hélvio Romero (helvioromero.wordpress.com)

Daí, perguntas derivadas dessa questão fundamental: Pode bater em "mendigo" que dorme na rua? Queimar gente que cochila em ponto de ônibus é crime? Derrubar a casinha imaginária de papelão de quem não tem teto é errado? Jogar desinfetante em pobre que cheira mal é pecado? Esconder moradores de rua atrás de tapumes para proteger a ideia de belo é um equívoco? Eles têm o direito de ocupar o mesmo espaço que nós, que pagamos impostos? São, realmente, considerados seres humanos? A igreja já soltou algum comunicado dizendo que eles têm alma ou não da mesma forma como ela já fez com os índios?

Convenhamos: é tanta gente defendendo medidas de limpeza social na internet ou clamando por isso na TV que os "homens e mulheres de bem" ficam perdidos em meio a tantas opções – o que é um absurdo. Ainda mais nessa vibe "Cidade Linda" em que estamos entrando, quando mendigos e grafites cismam em atrapalhar o visual. Dane-se a ética! Viva a (questionável) estética!

Segue o guia:

Homem dorme na rua General Jardim, em São Paulo. Seu papelão poderia ser confiscado, pois está em claro delito de privatização do espaço público. Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

1) É permitida a utilização de fogo com o objetivo de limpar áreas públicas de pessoas em situação de rua.

1.1) Considerando que o álcool vendido no varejo não queima como o de antigamente, recomenda-se o uso de gasolina, etanol, diesel ou querosene.

1.2) O uso do fogo como instrumento de limpeza social deve se atentar para o risco de atingir veículos automotores em vias públicas. Nesse caso, os infratores serão responsabilizados com todo o rigor da lei.

Rapaz em situação de rua foi queimado com combustível por rapazes, em Curitiba, em junho de 2014. Com o corpo em chamas, ele saiu correndo até um motorista usar o extintor de incêndio do seu carro para socorrê-lo

2) Áreas cobertas em viadutos, pontes, túneis ou quaisquer locais públicos que possam acolher população em situação de rua devem ser preenchidas com concreto ou gradeadas, evitando assim a criação de nichos ou casulos de maltrapilhos prontos para assaltar o cidadão de bem.

2.1) Em caso de uso de concreto para preencher esses espaços, lembre-se que a face superiora da concretagem não deve ficar paralela à rua, mas com inclinação suficiente para que um corpo sem-teto nela estendido e prostrado de cansaço e sono role feito um pacote de carne velha até o chão.

2.2) Outra opção, caso seja impossível uma inclinação acentuada, é o uso de floreiras, cacos de vidro, lanças de metal ou cactos. É menos discreto, mas tem o mesmo resultado.

2.3) Se o pessoal dos "direitos humanos" reclamar e/ou houver pressa para a solução do problema, a implementação de tapumes escondendo as pessoas em situação para os motoristas funciona como um alento provisório. Afinal, o que os olhos não veem, o coração não sente.

Cactos plantados, em Salvador, embaixo de viadutos. Eles espantam pessoas em situação de rua (Fernando Vivas/A Tarde)

3) Prédios novos devem ser construídos sem marquises para impossibilitar o acúmulo de sem-teto ou de supostos marginais em noites frias e/ou chuvosas.

3.1) Caso seja impossível por determinações estéticas do arquiteto, a alternativa é murar o edifício ou cercá-lo de grades ou placas de acrílico. A colocação de seguranças armados é outra possibilidade, caso haja recursos para tanto.

3.2) Em caso de prédios mais antigos, uma saída encontrada por um edifício na região central de São Paulo e que pode ser tomada como modelo é a colocação de uma mangueira furada no teto, emulando a função de sprinklers. Acionada de tempos em tempos, expulsa desocupados e usuários de drogas. Além disso, como deixa o chão da calçada constantemente molhado, espanta também possíveis moradores de rua que queiram tirar uma soneca por lá.

Grade que chegou a ser instalada em Porto Alegre para evitar população em situação de rua (Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21)

4) Bancos de praça devem receber estruturas que os separem em três ou quatro assentos independentes. Apesar disso impossibilitar a vida de casais apaixonados ou de reencontros de amigos distantes, fará com que sem-teto não durmam nesses aparelhos públicos, atrapalhando a real função de um banco, é enfeitar a praça.

Novamente, Porto Alegre.

5) Em regiões com alta incidência de seres indesejáveis, recomenda-se o avanço de grades e muros para além do limite registrado na prefeitura, diminuindo ao máximo o tamanho da calçada. Como é uma questão de segurança, um fiscal municipal que discordar da situação pode "se fazer entender" da importância de manter esse avanço irregular através de um mimo.

6) Cloro deve ser lançado nos locais de permanência de sem-teto para garantir que eles se espalhem. Caso não seja suficiente, pode ser necessária a utilização de produtos químicos mais fortes vendidos em lojas do ramo, como vem fazendo algumas lojas no Centro da cidade. A sugestão é o uso de um aspersor conforme o item 2.2, mas instalado no chão.

7) Apoiar propostas legislativas, como a retirada compulsória de seres indesejáveis dos espaços públicos ou mesmo a flexibilização da legislação vigente, permitindo ações preventivas de uso da força contra mendigos que se aproximem de automóveis de cidadãos de bem em semáforos fechados.

7.1) Uma revisão das cláusulas pétreas na Constituição, relacionadas a direitos fundamentais e que atrapalham o aprofundamento da limpeza social na cidade, também se faz preciso. Especial atenção ao subversivo "direito de ir e vir".

8) Apoiar incondicionalmente a ação de prefeituras quando elas retiram cobertores e papelões que servem para proteger os seres indesejáveis nas noites e madrugadas frias.

8.1) A justificativa é de que essa ocupação irregular de poucos metros quadrados privatiza o espaço público e torna a cidade mais feia, o que é inaceitável. A privatização do espaço público e a imposição de violência estética só devem ser permitidas quando feitas por importantes empresas, grandes clubes, luxuosos condomínios e honoráveis cidadãos. Porque, afinal de contas, a cidade pertence a eles.

Pessoa em situação de rua usa sofá abandonado em noite de muito frio em São Paulo. Foto: Nacho Doce/Reuters

9) Albergues públicos devem ser garantidos em número bem inferior à quantidade de seres indesejáveis em cada bairro. Dessa forma, ou eles congelam e morrem do lado de fora ou fogem para outro lugar. Não importa, de qualquer jeito, o problema se resolve.

10) Caso seja questionado pela aplicação de qualquer uma das medidas acima apresentadas, responda com a argumentação desenvolvida há décadas pela elite da cidade e que se mantém atual e cheia de significado de como ela vê o papel do indivíduo e as responsabilidades do Estado: "Tá com dó? Leva para casa".

Agora, me digam: não é assustador que parte das pessoas que lerão este post irá considerar tudo isso boa ideia?

 

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto