Brancos ricos e negros pobres que cometem crimes têm o mesmo tratamento?
Leonardo Sakamoto
23/01/2017 14h00
Atente para o enunciado:
Dirigindo o carro de seu pai, um jovem desobedeceu uma ordem de parada, furou uma blitz da operação Lei Seca, atropelou o agente de trânsito Diogo Nascimento de Souza (que morreu logo depois) e fugiu sem prestar socorro, neste sábado (21), em João Pessoa, na Paraíba.
Considerando que o desfecho da história foi o seguinte:
O jovem teve a prisão temporária decretada na mesma noite, mas conseguiu um habeas corpus do desembargador Joás de Brito Pereira Filho às 3h da madrugada. Segundo o magistrado, não havia "justa causa para justificar o cerceamento do direito de locomoção" do motorista.
Qual desses duas biografias teria maior probabilidade de ser o motorista:
a) José da Silva, jovem e negro, dirigia o Monza branco da família. Seu pai é chapeiro em uma lanchonete no centro de João Pessoa e sua mãe, manicure. Ele, que conseguiu um serviço como atendente na lanchonete em que o pai trabalha, é o primeiro da família a ter terminado o ensino médio.
b) Rodolpho Gonçalves Carlos da Silva, jovem e branco, dirigia o Porcshe branco da família. É neto de José Carlos da Silva Júnior, ex-senador e ex-vice governador da Paraíba, herdeiro do Grupo São Braz, um dos maiores produtores de café torrado do país e que sua família também controla empresas de comunicação, entre elas, uma afiliada da Rede Globo.
Qualquer pessoa, rica ou pobre, deve ter todo o direito à ampla defesa. E prisões temporárias ou provisórias devem ser usadas com parcimônia, para evitar que o acusado suma com provas ou quando ele é um risco à sociedade, e não como punição sem julgamento pelo crime cometido. Queremos Justiça, não vingança.
Mas o fato de sermos capazes de responder à pergunta colocada com extrema facilidade e de acertar o resultado na maior parte das vezes em que esse tipo de coisa acontece, mostra que ainda temos que caminhar muito para que todos tenham acesso igualitário à Justiça independente de sua classe social ou etnia.
Vale lembrar que Valdete foi condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete e teve um habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal. Só porque não era ré primária e o furto não foi para matar a fome, disseram. Ou mesmo Maria Aparecida, que foi mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado. E, não conseguindo um habeas corpus, perdeu um olho enquanto estava presa.
Não se enganem: para que pessoas sejam avaliadas pelo que fazem e não por sua família, conta bancária ou cor de pele teremos, primeiro, que refundar um país.
Até lá, a meritocracia seguirá quase sempre hereditária no Brasil.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.