O ódio à Marisa Letícia: É o Brasil antropofágico que pede passagem
Leonardo Sakamoto
25/01/2017 23h43
Leia texto de Rodrigo Savazoni, ao final deste post, sobre o movimento antropofágico.
Marisa Letícia, esposa do ex-presidente Lula, sofreu um acidente vascular cerebral e está internada, em estado grave e em coma induzido, em São Paulo.
Bastou isso para que as áreas de comentários dessa notícia em veículos de comunicação fossem invadidas por enxames de semoventes destilando ódio e desejando dor a ela e, principalmente, a ele através do sofrimento dela.
De igual virulência, porém em menor quantidade, o mesmo show de horrores aconteceu quando Thomaz, filho do governador Geraldo Alckmin, morreu em um acidente de helicóptero em abril de 2015. Naquela época, muitos foram os idiotas que chamaram isso de "justiça divina".
Temos um déficit de formação para a empatia, para reconhecer no outro alguém que tem os mesmos direitos e sentimentos que nós. Mas o déficit ocorre também para a cultura política do debate – infelizmente, não somos educados, desde cedo, para saber ouvir, falar, respeitar a diferença e, a partir daí, construir consensos ou saber lidar com o dissenso. Não somos treinados para a tolerância. Não somos educados para a noção de limites.
Quando questionados, os semoventes carniceiros vociferam palavras de vingança, mostrando que desconhecem qualquer noção de Justiça. Pelo contrário: acreditam que o vazio de sentido da vida que ostentam dentro do peito pela incompreensão da realidade que os cerca será preenchido apenas quando sangue de linchamento escorrer em praça pública. Como se isso reequilibrasse o universo.
Ao mesmo tempo que o aumento do acesso à internet nos levou a descobrir que nem todo mundo pensa como nós, as bolhas das redes sociais trouxeram a falsa sensação de que a maioria das pessoas pensa igual a nós. E, a partir daí, muitos se reconheceram em sua ignorância e se, orgulhosos disso, juntaram-se em matilhas. Enquanto isso, outros se especializaram em controlar essas matilhas e produzir ataques.
Daí, muita gente entrou em estado de guerra contínua e deflagrada. Guerra contra outras pessoas que não concordem com as suas versões da realidade, tida por eles como verdades absolutas.
Estamos chegando ao fundo do poço? Claro que não. Até porque, lá no fundo, tem um alçapão.
Há aqueles que se utilizam da justificativa política ou econômica para poder extravasar seu ódio e seu desejo por vísceras e demonstrar toda sua incapacidade de sentir essa empatia pelo semelhante. E há aqueles que não conseguem ser contestados e, incapazes de admitir ignorância sobre algo, usam a agressividade como saída.
Fazem isso vomitando argumentos de botequim sobre política e economia, mas poderiam fazer o mesmo – ou realmente fazem – em nome de seu time de futebol, de sua religião, de sua cor de pele, de sua orientação sexual, de sua identidade de gênero, de sua origem social – ou de qualquer razão irracional.
As pessoas acham que a democracia é algo forte. Na verdade, é tão frágil quanto uma folha de papel em branco. A democracia brasileira sobrevive sem PSDB e PT. Mas não sobrevive se abandonarmos as instituições e resolvermos nos canibalizar.
Por enquanto, porém, vamos transformando uma interpretação literal do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, em profecia cumprida.
"Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente."
O último a devorar o outro, por favor, apague a luz.
(Em tempo: peço desculpas pela ofensa modernista de usar o sentido literal – que é oposto à proposta original. Mas caiu como uma luva. Creio que Oswald não se importaria.)
***
Após a publicação deste post, um grande amigo, o jornalista e pesquisador Rodrigo Savazoni, especialista no movimento antropofágico, me apontou os riscos e o erro de usar – mesmo que literalmente – a expressão para um significado diferente de sua real amplitude e profundidade. Pedi, então, a ele para escrever um texto para que o leitor entendesse qual o meu erro e conhecesse um pouco mais do que o termo significa. Agradeço a ele pela educação e pelo diálogo construtivo ao apontar o problema. Segue o texto dele abaixo:
Em um ensaio publicado na introdução à edição comemorativa dos fac-símiles da Revista da Antropofagia, o poeta Augusto de Campos afirma que a antropofagia é a "única filosofia original brasileira e, sob alguns aspectos, o mais radical dos movimentos artísticos que produzimos". Surgida na virada dos anos 1910 para os 1920, por obra de um grupo de intelectuais e artistas modernistas, a antropofagia não se pretendia apenas uma ação no campo da arte e da cultura, mas sobretudo revirar e remexer questões sociais, políticas e religiosas.
Seu texto fundamental é o Manifesto Antropófago, síntese escrita por Oswald de Andrade, publicado em 1928. Mas também se expressa nos quadros de Tarsila do Amaral, em especial no Abaporu, no Macunaíma de Mário de Andrade, na obra poética de Raul Bopp, na obra-vida de Pagu, e viria a inspirar artistas do porte de Glauber Rocha, Hélio Oiticica, José Celso Martinez Correa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Science e por aí vai. Oswald de Andrade ainda viria a desenvolver suas ideias sobre isso em outros textos, em especial em "A Crise da Filosofia Messiânica" e "A Marcha das Utopias", escritos após romper com o Partido Comunista.
Para o debate que nos interessa aqui, neste espaço aberto pelo Sakamoto, o fundamental é compreender a dimensão política da antropofagia. Como escreve o crítico literário Antonio Cândido, os anos 1920 no Brasil não eram dados a conservadorismos. Mesmo os movimentos de inspiração fascista, naquele momento, pretendiam uma transformação radical da ordem vigente. Os intelectuais modernistas, que estiveram juntos na Semana de Arte Moderna, optaram por caminhos distintos. A antropofagia foi um deles e talvez tenha sido o mais incompreendido.
Oswald buscou nos rituais dos canibais a inpiração para defender a ideia de que era preciso deglutir, de forma crítica e bem-humorada, as informações que nos chegavam de fora. Portanto, que nossa cultura deveria estar aberta ao mundo, relendo-o a partir dos elementos que nos constituem e nos diferenciam. Repare que não estamos tratando da produção de uma cultura for export, que o poeta chamava de macumba para turista, mas da produção de sínteses originais.
Em um momento em que o nacionalismo ganhava força, por meio do verde-amarelismo que respirava o ar da infamia vindo da Europa, tendo como outra face da moeda a xenofobia, a antropofagia se propunha um antídoto internacionalista, por defender o convívio na diferença e as identidades flexíveis. Era uma visão em essencia libertária e que deveria nos inspirar neste momento em que, mais uma vez, estamos diante do avanço do ódio desmedido.
Obviamente que podemos falar em antropofagia e canibalismo da perspectiva literal, ou seja, do ato de um humano comer alguém de sua própria espécie. Mastigá-lo. Degluti-lo, quiçá destruí-lo. Mas ao se referir ao conceito proposto por Oswald de Andrade e seus parceiros, é preciso ter o cuidado de demonstrar que essa forma antropofágica não olha para o outro como inimigo, mas como possível colaborador de um banquete onde o que interessa é a produção conjunta de novas ideias e sentimentos sobre o que queremos ser.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.